Requiem à Saúde Mental em Portugal?

Se o Requiem descrito num artigo recente no PÚBLICO parece exagerado, talvez ainda não seja caso para Aleluia.

Antes de mais, há que agradecer ao jornal PÚBLICO a atenção (espaço) dedicado à Saúde Mental, generosidade que, desde logo, permite concluir que “não está morta”! Aliás, está viva e mexe-se! Ou seja, se o Requiem parece exagerado, talvez ainda não seja caso para Aleluia! O artigo da Prof.ª Mónica Brito-Vieira é, assim, uma boa oportunidade para clarificar alguns pontos, não especialmente à autora, mas em especial a quem a possa ter lido e para memória futura!

Quanto aos planos — que, por vezes, mais parecem aeroplanos, de tão desligados da realidade — não haverá muito a contestar: talvez seja mesmo verdade que em Portugal se planeie demais e se realize de menos (relativamente, claro!). E o caso da Saúde Mental não se afasta muito desta realidade. Um bom plano (e não apenas na opinião dos adeptos “naturais”), assente numa análise — dura, mas realista — objetiva da situação de 2004 e 2005, indicava um caminho de desconcentração/descentralização dos recursos alocados à prestação de cuidados de Saúde Mental, tentando inverter a enorme desproporção entre os três grandes centros e o restante território, privilegiando uma proximidade propiciadora de acessibilidade, que a arquitetura tradicional — ainda vigente no final do século passado, quando foi publicada a Lei de Saúde Mental de 1998 — não facilitava. Porque se mantinha excessivamente centrada nos hospitais, agora também nos gerais e não apenas nos psiquiátricos, como acontecia menos de uma década atrás, a partir da integração, algo inopinada, dos centros de saúde mental como serviços ou departamentos da maioria dos hospitais gerais.

O que já não é verdade é que não tenha sido escrutinado: várias foram as avaliações da implementação do Plano Nacional de Saúde Mental (PNSM), internas e externas, a mais recente das quais determinada por despacho de fevereiro último e muito em breve a tornar pública.

As assimetrias vigentes — bem menos acentuadas atualmente — só são menos gritantes porque acompanham as assimetrias demográficas, que se mantêm em crescimento. Como também o recurso ao internamento vem diminuindo, em particular no setor público. E só não é mais significativa essa diminuição porque, à falta de uma intervenção de base comunitária mais pujante — como o PNSM advogava —, a identificação e intervenção atempadas nas descompensações, porque mais próximas, estão prejudicadas. Como, igualmente, as altas nem sempre têm condições de ser dadas quando clinicamente se justificaria, por falta de garantias de acompanhamento posterior com a intensidade desejável, ou de respostas sociais alternativas.

Chegamos ao ponto da “avaliação” do funcionamento do Hospital de Magalhães Lemos (HML), referência da região norte, em que é o único público, como no país é o único dos dois psiquiátricos com gestão empresarial e com acreditação e certificação pela britânica CHKS.

Na verdade — ao contrário do desejável e previsto no Plano de 2007 —, os Serviços Locais criados em todos os hospitais gerais da área não dispõem de capacidade de internamento, o que conduz à necessidade de continuar a ser garantido nas instalações do HML, com todos os inconvenientes que daí advêm (em especial para as áreas mais distantes, Médio Ave e Entre-Douro-e-Vouga), pela falta de continuidade de cuidados pelas respetivas equipas multidisciplinares e pela menor acessibilidade para manutenção do apoio da respetiva rede de apoio sociofamiliar. Tudo isto se traduzindo num aumento da área de referenciação para internamento, de cerca de 550 mil para perto de 1,2 milhões de habitantes (465 para 965 mil, com 18 ou mais anos) e com uma lotação que passou de 150 para mais de 220 camas, com taxas de ocupação sistematicamente superiores a 125%, sendo os recursos humanos praticamente os mesmos.

O internamento em psiquiatria — como na maioria das especialidades médicas — é hoje um último recurso, por vezes se justificando apenas pela necessidade de afastamento temporário do doente de uma situação stressante ou para proteção do próprio ou dos seus próximos. No limite, sendo possível fazê-lo — em Portugal, como em todos os países desenvolvidos — contra a sua vontade.

Será, pois, sobre o acompanhamento ambulatório, efetuado pela equipa responsável, que deve incidir o máximo de atenção, como muito bem é referido, à história de vida que só uma relação de confiança paciente-médico pode desvendar, para assim se poderem ver e tratar os sintomas como parte dessa história maior.

Por essa razão, é impreciso aplicar ao internamento em psiquiatria os mesmos critérios de utilidade dos dias de internamento das outras áreas médicas: o tempo pode, aqui, ser só por si terapêutico, quer na justificação da admissão, quer na determinação da alta.

É, porém, no elencar dos detalhes que a nossa discordância é maior, porque manifestamente empolados, quando não distorcidos ou mesmo imaginados. Mas sobre estes, nada melhor do que termos a oportunidade de os abordar num contacto pessoal com a signatária, para o que nos disponibilizamos em absoluto.

Não se poderá concluir sem uma palavra de agradecimento pela referência feita ao facto de haver quem considere o Magalhães Lemos “o melhor que o país — sistema público e privado — tem para oferecer”. Também, apesar de tudo, pela ressalva de que o documento em apreço não é feito contra uma instituição em particular, mas contra um modelo de saúde mental — aquele contra o qual o PNSM foi elaborado — completamente desajustado de uma prática clínica moderna e integrada, que convoque várias disciplinas na reestruturação da pessoa para os embates e as alegrias da vida.

Ora esse foi (é) exatamente um dos objetivos do PNSM 2007-16. Por isso está proposta a sua extensão e aprofundamento até 2020. Assim ele se possa cumprir!

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