Quanto design há no nosso jantar?

Pensar um jantar como uma viagem e resolver problemas como um designer faz – foi este o desafio dos alunos de um mestrado de Artes Culinárias, que trabalharam com alunos de Design para criar uma refeição única.

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O que é que uma receita de risotto verde tem a ver com design? Num livro de 1981, Da Cosa Nasce Cosa, o artista e designer italiano Bruno Munari (1907-1988) explica que tem tudo a ver. O método para resolver o problema é exactamente o mesmo. Munari cria uma sequência de passos que começa com a identificação do problema – o risotto verde – e termina com a solução – o prato pronto – passando por várias fases como a recolha e análise de informação, a criatividade, o teste dos materiais.

“A relação entre as duas coisas é muito próxima”, diz Ricardo Bonacho, professor de design aplicado à culinária no Mestrado em Inovação em Artes Culinárias da Escola Superior de Hotelaria e Turismo do Estoril (ESHTE), coordenado pela professora Maria José Pires. Este ano – em que a escola comemora o seu 25.º aniversário – os alunos do mestrado perceberam perfeitamente essa relação. Foram, aliás, eles que insistiram em fazer um projecto muito original.

Recuemos até ao dia 10 de Maio. Um grupo restrito de 12 pessoas recebera nas suas casas um convite azul para um jantar que – era tudo o que se sabia – se intitulava A Saudade Portuguesa – Uma Viagem Gastronómica. A ideia, conta Ricardo Bonacho, surgiu depois de ter mostrado aos alunos o filme El Somni, uma ópera que reúne todas as áreas artísticas e que foi criada pelos três irmãos Roca, Joan, Jordi e Josep, do restaurante espanhol El Celler de Can Roca, o segundo melhor do mundo na lista The World’s 50 Best.

“Os irmãos Roca sempre foram muito curiosos; e a curiosidade é o início da criatividade”, lê-se no site do projecto dos espanhóis. Inspirados pelo que viram, os alunos apresentaram a sua proposta para o aniversário da escola: para além do projecto que tinham de fazer no mestrado para desenvolver produtos alimentares inovadores, gostariam de organizar também um jantar que, tal como o dos Roca, juntasse diferentes áreas criativas em torno da comida.

Como Ricardo Bonacho está a fazer o doutoramento em design na Faculdade de Arquitectura de Lisboa, surgiu naturalmente a ideia de juntar também os alunos desta escola. E entra em cena a professora Rita Filipe e a sua turma do segundo ano da licenciatura em Design. Era preciso, depois, que os dois lados encontrassem uma linguagem comum. E é a propósito dessa experiência que Bonacho cita o risotto verde de Munari. “A diferença maior é que enquanto os designers trabalham geralmente com materiais não perecíveis, os alunos de gastronomia usam produtos perecíveis.” De resto, há muito em comum.

O tema escolhido para o jantar foi A Saudade Portuguesa e a partir daí partiram para a criação da narrativa. Se os Roca, inspirados pela tradição dos grandes banquetes, de Platão ao famoso chef Vatel, passando pela Última Ceia do Novo Testamento, tinham uma ópera em 12 actos, com 12 pratos para 12 convidados, os alunos não quiseram ficar atrás.

A sala do restaurante da escola foi totalmente transformada e, quando os convidados entravam, a luminosidade azul que envolvia tudo, o fumo que se elevava do chão e a música composta especialmente para a ocasião e tocada ao vivo pelo compositor M-PeX (Marco Miranda) criavam o ambiente para a partida. À volta da mesa, painéis desenhados evocavam já a viagem e os Descobrimentos, que serviam de mote ao que se iria passar. “Criámos uma suposta cápsula que iria levar os convidados numa viagem”, resume o professor.

O objectivo era reinterpretar “sabores tradicionais que alimentam a memória do povo português” enquanto eram lidos excertos de textos que falavam da viagem por mar, da descoberta de uma ilha, da chegada a terra, novamente o mar, o regresso – e, no meio de tudo isto, a saudade. “Não queríamos que fosse uma saudade deprimente”, diz Bonacho. “Queríamos sobretudo que fosse uma questão sensorial, que a experiência passasse por todos os sentidos.”

Mas se, habitualmente, os alunos do mestrado têm que pensar nos empratamentos, aqui pedia-se muito mais. A própria louça tinha que ajudar a contar a história. E foi para isso que se procurou encontrar uma linguagem comum com os estudantes de Design. Numa conversa com o PÚBLICO nas oficinas da Faculdade de Arquitectura, enquanto à nossa volta outros alunos constroem cadeiras e objectos vários, a turma de Rita Filipe recorda esse encontro com o mundo da gastronomia.

“Aqui já estamos a navegar, daí a ideia de uma concha dentro do mar”, explicam Filipa Rosa e Rita Costa, mostrando um prato em forma de concha invertida, azul forte, que criaram para os colegas de gastronomia, Inês Rodrigues e Natasha Vieira, que estavam a trabalhar numa versão de carne de porco à alentejana, servida numa bolinha, um dos amuse-bouche do jantar. A concha (que passou por versões diferentes como uma estrela-do-mar, por exemplo) tem em cima uma reentrância redonda onde encaixa a bolinha. “Decidimos que iria ser a pérola e fizemos assim para lhe dar mais destaque”.

Filipa Rosa e Rita Costa conceberam um prato em forma de concha invertida para uma versão de carne de porco à alentejana dos colegas da escola de hotelaria Inês Rodrigues e Natasha Vieira
Preparação do jantar A Saudade Portuguesa
A sardinha, num prato decorado com a espinha do peixe, comestível
Caçada: o regresso a terra com um passeio pelos bosques no qual uma peça de caça foi servida com legumes e terra comestível
Um dos desenhos com a temática do jantar, A Saudade Portuguesa
Tempura, a evocar as influências gastronómicas deixadas pelos portugueses no mundo, num prato que lembra uma onda a chegar à praia
Diego Rojas criou o prato que baptizou como Mariscada e os alunos da licenciatura em Design Tiago Montalvão e Marta de Castro deram-lhe forma
Ambiente do jantar que reuniu 12 pessoas na Escola de Hotelaria do Estoril e que proporcionou o encontro entre várias disciplinas artísticas, uma ideia reproduzida também no filme El Somni, criado pelos três irmãos espanhóis Roca
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Filipa Rosa e Rita Costa conceberam um prato em forma de concha invertida para uma versão de carne de porco à alentejana dos colegas da escola de hotelaria Inês Rodrigues e Natasha Vieira

Outra dupla de alunos, Tiago Montalvão e Marta de Castro, partiram do empratamento do prato baptizado como Mariscada. Havia vários elementos soltos, entre os quais se destacava um carabineiro, e o prato, preto mas com pequenas manchas azuis, parece uma forma orgânica que se adapta para receber e acomodar os mariscos – como se estes tivessem, muito naturalmente, desaguado nele. “Era exactamente o que eu queria”, exclamou Diego Rojas, o autor da Mariscada.

Os alunos vão mostrando os moldes, contando as dificuldades que tiveram com as peças que se foram partindo porque as formas originais nem sempre se mostravam muito resistentes. Maria Belo e Ana Feliciano inspiraram-se nas ondas para um momento da história em que vamos já em alto mar e em que é servido um bacalhau e contam que inicialmente o prato ia ter um ovo, que se espalharia, e isso implicaria outras soluções da parte delas que tiveram também que ser equacionadas; Sofia Oliveira e Rita Ribeiro pensaram nas montanhas da Serra da Estrela para receber a sobremesa de requeijão de Seia e mel de laranjeira do Algarve, e abriram pequenos sulcos para que o mel os pudesse percorrer; Juliana Mateus e Cláudia Pinto partiram da casca das árvores para receber um dos pratos da “chegada à terra”.

Houve uma torre para os petit-fours e cilindros de diferentes tamanhos como se fossem árvores a nascer no centro da mesa. Houve sons e cheiros e sabores e muitas artes juntas para contar uma mesma história. Houve problemas para resolver e ideias que ficaram pelo caminho. Mas, sobretudo, houve diálogo entre duas disciplinas diferentes – diálogo que já se tinha iniciado com o outro projecto do ano, a criação de produtos alimentares inovadores ligados às leguminosas (a ONU estabeleceu 2016 como o Ano Internacional das Leguminosas).

Para a criação desses produtos – entre os quais um pastel de leguminosas, inspirado no pastel de nata mas usando tremoço e feijão – os alunos da ESHTE trabalharam com os de Design de Produto para criar a imagem, as embalagens, e até a forma do alimento. “Os alunos estavam formatados para a técnica, a nutrição, a dietética”, afirma Bonacho. “E o design obriga-os a pensar: porque é que vamos fazer isto, de que forma, para quem? No início do ano eles apresentavam os projectos e eu perguntava porquê aquela forma ou aquela cor e eles tinham dificuldade em responder.”

O que quis foi, no fundo, pô-los a pensar como um designer, embora, sublinha, “não querendo que se transformem em designers, porque, apesar de tudo, são áreas distintas”. O pastel de leguminosas é um bom exemplo do resultado desse esforço. “Eles pensaram em imensas funções para este doce. Criaram, por exemplo, uma colher que era um contentor de especiarias, que era comestível e ao mesmo tempo servia também para mexer o café.”

O professor confessa que quando foi inicialmente convidado para dar aulas no mestrado interrogou-se sobre “o que um designer de comunicação iria fazer numa escola de hotelaria e turismo”. Mas depois percebeu que “a relação é mais próxima do que pensamos” e que “há muitas áreas em que o design se cruza com a gastronomia”. E a organização do jantar Saudade Portuguesa foi uma oportunidade para “mostrar como é importante criar parcerias entre os profissionais da gastronomia e os designers”.

Como dizem os irmãos Roca no texto de apresentação do El Somni: “Precisamos de abrir novas fronteiras na ciência, na arte e no pensamento, e a cozinha pode ser enriquecida com isso. […] Queremos ser facilitadores da expansão das ideias. Vamos continuar a perseguir o sonho…”.

O projecto Saudade Portuguesa pode ser conhecido (em breve) no site www.saudadeportuguesa.pt, num livro a publicar ainda este ano e numa exposição.

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