Manuel Luís a pensar nos gelados Rajá e nos bolinhos de Ançã

A Figueira da Foz era enorme aos olhos do pequeno Manuel Luís Goucha que ali passava um mês de Verão. Era do tamanho das suas "memórias bonitas", que conta ao pormenor, no tempo em que "as pessoas iam à praia para ver e serem vistas".

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Manuel Luís Goucha com a mãe, Maria de Lourdes Sousa, junto ao posto do banheiro que todos os dias o mergulhava no mar DR
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Manuel Luís com a mãe, o irmão e o padrasto na praia da Figueira da Foz DR
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Nas brincadeiras com o irmão não faltavam os baldes - “que não eram de plástico, ainda eram de folha” [de Flandres, feitos com estanho e aço] DR
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Manuel Luís com a mãe, o irmão e o padrasto na praia da Figueira da Foz DR
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É enorme o mundo aos olhos de uma criança. “Eram as casas, o areal, as senhoras, os vestidos, o casino. Era tudo muito grande”, quando Manuel Luís Goucha, de “sete ou oito anos”, olhava para o cenário iluminado pelo sol em bica sobre a Figueira da Foz, onde passou os Agostos da sua infância.

Passava-os naquela que era a terra da família materna, na “grande praia de quem vivia em Coimbra”, dividida por classes. Ele era, desde os três anos, daqueles que viviam na margem no Mondego e procuravam a Figueira para, no Verão, encurtar a distância para o mar. Eram férias passadas à volta da mãe, em que o rosto se lavava com lágrimas ao vê-la partir no comboio.

As férias começavam ainda em casa, com o “ritual de preparação das malas”. Tinham de arranjar espaço para os livros, os baldes — “que não eram de plástico, ainda eram de folha” [de Flandres, feitos com estanho e aço] —, para as “forminhas para se fazerem os bolinhos de areia” e para o “prego com que se jogava”. “Era sempre uma algazarra, era sempre um frenesi.”

O carro da família era o do pai, que se separara da mãe quando Goucha tinha três anos. Por isso, era de táxi que o pequeno Manuel Luís, o irmão, a mãe e a avó chegavam à Figueira para um mês de férias. “Naquela altura não havia auto-estrada, portanto demoraria uma hora e meia [de viagem], com toda a tralha para um mês, quando não eram dois.”

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Manuel Luís Goucha com a mãe, Maria de Lourdes Sousa, a protagonista de grande parte das suas memórias

A mãe, Maria de Lourdes Sousa, continuava a trabalhar no cabeleireiro em Coimbra durante a semana. Todas as sextas, Manuel Luís esperava-a à saída do comboio. “A sexta-feira era o dia mais importante. E eu já era gozado pelas pessoas da família: ‘Hoje vem a mamã, hoje vem a mamã'.” Ao domingo, voltava à estação “agarrado às saias”. “Eu chorava baba e ranho, era um drama.” Diziam-lhe: “‘Coitadinha da criança, está a sofrer horrores’, mas a separação era por três dias.” A esta distância parece-lhe “ridículo”, mas conserva o carinho por aquele choro. “Afinal, ainda sou um menino da mamã.” 

A casa da tia-avô Laura

Ficavam sempre,  durante um mês, numa casa da família, uma das várias que a tia-avó Laura alugava aos banhistas. “Lembro-me de todas essas casas onde estive. Mas já não as vejo há 40 anos.”

Iam para a praia de manhã — “uma praia enorme, gigantesca aos olhos de uma criança”. Em tenra idade dificilmente se apercebia da “geografia social” que se desenhava no areal. “Há 50 anos, era muito estratificado: os mais pobres ficavam na zona de Buarcos, tradicionalmente ligada aos pescadores, e as famílias endinheiradas — a burguesia de Coimbra — ficavam na zona do então Grande Hotel da Figueira, que hoje é o Hotel Mercure, junto àquele relógio alto que lá está e que na altura não funcionava.” Manuel Luís Goucha conta os pormenores dos verões da infância com a precisão com que leria uma receita.

“Nós, os remediados — que era uma classe que existia antes do 25 de Abril —, ficávamos no meio. E íamos fazendo o passeio na praia, à beira-mar, até à ponta da burguesia. Foi com a idade que fui percebendo estas coisas: as pessoas iam à praia para ver e serem vistas. Os fatos de banho, as saídas de praia, mesmo a própria disposição das barracas, dos toldos e dos chapéus era completamente diferente naquela zona dos doutores e das famílias mais tradicionais de Coimbra.” Gostava de ver ali as pessoas da alta sociedade cujas modas conhecia, porque a mãe fazia a “manicura de muitas daquelas senhoras”.

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Foi naquela praia, recorda, que conheceu aquele que viria a ser o seu padrasto

Na zona que lhes era destinada — afinal, havia um jogo do tipo “diz-me como te comportas na praia, dir-te-ei quem és”— espetavam na areia um “chapéu-de-sol com saia”, entre as barracas mais atrás e os toldos mais pequenos na primeira linha para o mar. Apesar de encontros circunscritos aos fins-de-semana, a mãe protagoniza a maioria das suas memórias. “Lembro-me de imagens dela com roupões a condizer com os turbantes que se usavam na década de 60”, diz ao folhear as pequenas fotografias que a máquina da mãe tirava. Há um retrato de família com uma barraca de riscas ao fundo. Foi naquela praia, recorda, que conheceu aquele que viria a ser o seu padrasto.

As mulheres de branco “imaculado”

A mãe dissera-lhes: “Agora portem-se bem porque vem ali o senhor que emprestou este livro à mãe.” Era um exemplar de Nem só de Caviar Vive o Homem, um livro de espionagem de Johannes Mario Simmel. Trinta anos mais tarde, havia de encontrar e comprar na Feira da Ladra o mesmo livro de lombada azul que o sr. Braga, como lhe chamava, emprestou à mãe.

Da Figueira da Foz Manuel Luís guarda “memórias bonitas da infância e adolescência” que descreve ao pormenor. Gostava de observar as pessoas, descrever o que lhe levavam, o que lhe diziam. Lembra as bolas-de-berlim “que eram mostradas em tabuleiros dentro de umas caixas brancas de folha”, sempre levadas por senhoras vestidas de branco que as traziam à cabeça. “Tudo aquilo tinha um ar muito imaculado.” Havia os gelados Rajá, os “bolinhos de Ançã [vila em Cantanhede] que outras senhoras levavam à cabeça em cestos de verga tapados com linhos brancos” e a bolacha-americana que “homens com latas altas” traziam. Vinha com eles uma roleta com que os pequenos jogavam a sorte para que lhes saísse “uma língua-da-sogra”. Havia também a laranjada do Buçaco. E nunca mais provou amoras, “tão de tingir a boca e tão saborosas” como aquelas que colhia nas silvas na berma da estrada que ia dar à praia.

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De todos os rostos — do concessionário das barracas, do senhor dos gelados às vizinhas da casa da tia — há apenas um de que não se lembra. “Devo ter odiado tanto aquele homem que não me lembro da cara do banheiro que era contratado para nos dar mergulhos.” Todos os dias, o banheiro — “que já [os] conhecia” — saía do seu posto, debaixo de uma grande bola de publicidade à marca Nivea, para mergulhar as crianças “nas ondas gélidas da Figueira da Foz”. Fê-lo durante “14 ou 15 anos” sem que Manuel Luís compreendesse porque pagavam àquele homem para molhar as crianças.

Ao final da tarde, a praia ficava dourada. “Àquela hora, via-se o pôr do sol e, de perfil, a serra da Boa Viagem”. O que mais gostava era do fim do dia daqueles Verões quentes.

A desfolhada no pátio

O cair do dia não diluía a separação entre os veraneantes. “As senhoras da alta sociedade de Coimbra encontravam-se à tarde em frente ao casino para beber chá. Era chamado ‘o pátio das galinhas’, curiosamente. E nós, ao final do dia e à noite, perguntávamos: ‘Para onde vamos?’ E íamos para a rua do casino. Para trás e para a frente, para trás e para a frente. E andavam centenas de pessoas nesta espécie de trotear na rua do casino.”

Nas várias casas que a tia alugava havia sempre família. “Havia uma prima que eu recordo perfeitamente, também Laura. Era a figura da irmã mais velha que nos protegia e que nos levava para a praia. Havia a tia e o marido. E depois havia os outros banhistas, alguns deles espanhóis — havia muitos espanhóis na Figueira da Foz naquela altura — e mais crianças. O ambiente era muito divertido [no pátio, para onde davam todas as casas da tia Laura].”

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Nas brincadeiras com o irmão não faltavam os baldes feitos de folha de Flandres, em vez de plástico

“Podiam acontecer ali coisas incríveis. Eu nunca assisti a uma descamisada, ou seja, a uma desfolhada do Minho, a não ser ali.” Era uma pessoa de cidade — Manuel Luís viveu em Lisboa, Coimbra e no Porto — “entre cantares ao desafio, à procura do milho-rei, com estrangeiros e portugueses” que ali passavam férias.

Os Verões da infância e da adolescência eram, assim, “muito parecidos uns com os outros, mas tão interessantes”. Ainda o são aos olhos do homem de 62 anos com quem falamos no centro do estúdio do Você na TV, onde trabalha todas as manhãs de semana. “Os Verões da minha vida são estes que vão dos três até aos 17 anos”, é a frase com que começa e acaba a conversa. Com essa idade tornou-se “independente” e os Verões deixaram de ser importantes. Não faz praia “há 30 anos” e escolhe fazer férias no Natal, em Março e em Setembro.

Voltar à Figueira é sempre em trabalho. Hoje a avenida principal “tem prédios maiores do que os que havia na altura”. O casino mudou e a praia não é tão dividida. Perdeu a máquina da mãe e tem outra edição do livro de espionagem. Mas a maior diferença é que tudo lhe parece mais pequeno.

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