Presidente do Supremo critica enfraquecimento do Estado de direito

Henriques Gaspar mostra-se muito crítico da subtracção dos grandes interesses económico-financeiros aos tribunais comuns.

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Henriques Gaspar: "Somos confrontados […] à fuga do contencioso para formas de justiça privada” Enric Vives-Rubio

A subtracção dos grandes interesses económico-financeiros aos tribunais comuns e o enfraquecimento do Estado de direito foram os temas abordados nesta quinta-feira pelo presidente do Supremo Tribunal de Justiça, Henriques Gaspar, na cerimónia solene de abertura do ano judicial.

Perante o Presidente da República, a presidente do Parlamento e a ministra da Justiça, o magistrado criticou a forma como os litígios dos grandes interesses da finança e da economia — a concorrência, as comunicações ou a energia — “foram entregues ao direito das contra-ordenações, que tem sofrido acentuadamente uma deriva”. E avisou: “Pressente-se, em sensação larvar, a anestesia que esconde a erosão e mesmo a automutilação de direitos; e vão ficando, suavemente, manifestações de enfraquecimento do Estado de direito.”

Em causa está a chamada desjudicialização: os grupos económicos tendem cada vez mais a resolver os litígios recorrendo aos chamados tribunais arbitrais, onde figuras nomeadas por cada uma das partes em confronto fazem as vezes de juízes, e a outras formas alternativas de resolução de litígios.

“Para além da ambiguidade da desjudicialização, e da ausência de teste do efeito útil das diversas mediações, somos confrontados de várias fontes por insistente indução ideológica à fuga do contencioso para formas de justiça privada”, disse o presidente do Supremo. “Não pode constituir função de Estado promover a escolha de formas privadas de justiça. E nem sempre são compreendidos os critérios e a tendência para a instituição de tribunais arbitrais necessários, a que se aplica, por regra, o regime da arbitragem voluntária”, defendeu o magistrado. “Numa palavra, um caminho para a privatização da justiça, que quer realizar a utopia neoliberal de dispensar o juiz, ficando os tribunais da República numa função residual”. Uma função que se vê, assim, “limitada à dimensão criminal de controlo social, à decisão sobre — cada vez menos — direitos não transaccionáveis […], ao contencioso nascido de manifestações de desesperança sentida nos estratos mais frágeis da sociedade.” 

Nestas circunstâncias, acrescentou Henriques Gaspar, “os riscos da perda de identidade e de fragmentação da justiça estão muito presentes”.

O presidente do Supremo aproveitou a ocasião para lamentar ainda a não aprovação, durante o mandato governamental que agora termina, do novo estatuto dos magistrados. A este “naufrágio” cujas razões os juízes “não compreendem” chamou “uma oportunidade perdida sem glória”. E recordou a importância da aprovação do novo estatuto no novo modelo de organização dos tribunais lançado há um ano, cujas dificuldades se fazem ainda sentir.

Antes de Henriques Gaspar discursou na cerimónia a procuradora-geral da República, Joana Marques Vidal, que chamou também a atenção para o facto de também não ter sido publicado nesta legislatura, como estava previsto, o novo Estatuto do Ministério Público. Referindo-se à nova legislação produzida em matéria de reorganização dos tribunais mas também relativamente ao terrorismo, à violência doméstica e aos abusos sexuais contra menores, Joana Marques Vidal salientou que a sua efectiva aplicação exige investimentos ao nível não só dos recursos humanos como financeiros e materiais.

“São diplomas que teriam merecido um mais aprofundado debate público e uma melhor qualidade legística”, observou a procuradora-geral.

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