“Prefiro ir a tribunal por não cumprir um despacho do que por homicídio”

O administrador do Centro Hospitalar de Lisboa Norte orgulha-se de haver “um conjunto de cidadãos que passaram a optar” pela urgência do Hospital de Santa Maria. Alguns, diz, deixaram de ir ao sector privado

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Pela “pequena cidade” que é o Centro Hospitalar de Lisboa Norte (CHLN) passam por dia 17.500 a 20 mil pessoas. Quatro a cinco mil são doentes, alguns dos quais estão a vir do sector privado, diz Carlos Martins, ex-secretário de Estado da Saúde do PSD e administrador deste centro que inclui o Hospital de Santa Maria, “o maior hospital universitário do país”. Desde 2013 à frente do CHLN, que integra também o Hospital Pulido Valente, Carlos Martins adianta que conseguiu regressar a números de consultas, cirurgias e urgências de há quatro anos, quando a abertura do hospital de Loures lhe roubou cerca de um terço dos utentes. Mas mais produção implica mais dinheiro: o administrador quer 375 milhões de euros em 2017.

É o seu segundo mandato à frente do CHLN, agora com um ministro socialista. Tinha todo o apoio do anterior, Paulo Macedo. Como está a ser o relacionamento com Adalberto Campos Fernandes?
Obviamente as políticas do Governo são diferentes, mas a minha missão extravasa as questões ideológicas. Tenho tido excelente relação com o actual ministro, tal como tinha com o anterior.

O centro hospitalar continua com uma dívida enorme. Como é que isto se resolve?
A abertura do Hospital Beatriz Ângelo (Loures) foi dramática: perdemos 33% a 34% dos nossos utentes e essa diminuição não foi acompanhada por uma redução de recursos humanos. Quando chegamos, o CHLN estava em falência técnica, com uma dívida de 300 milhões de euros. 2013 foi um ano muito duro.

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Em 2014 conseguimos o equilíbrio financeiro no exercício. Temos crescimentos em toda a actividade clínica (consultas, cirurgias). Na urgência, o nível de atendimento está semelhante ao que tínhamos à data da abertura do Beatriz Ângelo. Desde Janeiro que está a crescer a dois dígitos e só 3,6% do crescimento é da nossa área de responsabilidade. Temos [doentes] de freguesias à volta que são da responsabilidade directa do Amadora Sintra, do Centro Hospitalar de Lisboa Central, do Beatriz Ângelo e o de Vila Franca de Xira. Há um conjunto de cidadãos que passaram a optar pela nossa urgência.

E isso está acontecer porquê?
Desde logo, o acesso é fácil, há estacionamento. A forma como nos organizamos não estimula concentrações, os doentes estão em várias zonas consoante a gravidade e ninguém sai de cá sem ter uma resposta. Temos uma equipa profissional e dedicada que trabalha muito bem. Também há cidadãos de concelhos limítrofes que foram obrigados a vir cá porque a suas urgências estiveram em ruptura, vieram em Invernos anteriores, e acabaram por ficar fidelizados. Fazemos 700 atendimentos por dia, em média. Temos um número de doentes  que se deslocalizaram do sector privado e social para o sector público e concretamente para nós.

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Esta procura acrescida não tem impacto na qualidade do atendimento? Dizem que os hospitais públicos estão caóticos.
Esta não é uma gestão olfactiva. Em regra, quando saio do hospital, passo pela urgência e outros serviços. Vou ao bar dos estudantes, circulo nos corredores. É óbvio que estamos a ter uma pressão diferente nas urgências, na instituição. Mas o importante é que o Santa Maria recuperou a sua actividade a níveis de 2012, em termos médios, o que é um dado fantástico.

É possível fazer tudo isso com os mesmos profissionais?
Neste momento preocupa-me mais a carreira de enfermagem do que a carreira médica. Não o número, mas os enfermeiros com experiência adequada. Temos perdido profissionais com 10, 15 anos de experiência em áreas críticas. Na área médica, saíram 50 nos últimos três anos e entraram 130. O saldo é positivo, mas ainda tenho falta de médicos. Sinto, como costumo dizer, uma tranquila insatisfação. Estou insatisfeito, mas estou tranquilo porque tenho consciência do potencial de crescimento. Vamos ter um movimento de contratação de enfermeiros até ao final do ano com alguma dimensão.

O despacho que obriga os hospitais a pedir autorização para todo o tipo de despesas não está a afectar o seu trabalho?
Não está a afectar por uma razão simples: com planeamento tudo se resolve.

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Foi apanhado de surpresa?
Eu não comento despachos de membros do Governo.

Mas este despacho não está a paralisar o seu trabalho?
É público que as instituições como a nossa têm um conjunto de constrangimentos decorrentes do memorando de entendimento. Mais importante do que esse despacho é a lei dos compromissos...

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Uma lei que não é cumprida por muitos…
É uma lei que nos obriga a um conjunto de medidas de planeamento [só se pode fazer compras que se possam pagar em três meses], e não estou a falar de contabilidades criativas. Quando saiu o despacho, repliquei a orientação que tinha dado por dúvidas sobre a lei dos compromissos. Ou seja: em momento algum a vida de um doente à nossa responsabilidade ou a sua qualidade de vida (sequelas) estará em causa, sob pena de eu próprio abrir um processo disciplinar. Na minha instituição, sempre que estiver em causa vida de um doente, nós decidimos. Prefiro ir a tribunal por incumprimento da lei dos compromissos ou de um despacho do que ir a tribunal por homicídio.

Como está a pensar resolver o problema financeiro, a dívida de 275 milhões de euros?
Também temos 75 milhões de créditos. A grande questão são os 200 milhões de euros de dívida que estão para trás. O próprio FMI, com quem [uma delegação] temos uma reunião todos os anos, diz que é de todo impensável, mesmo que fechássemos o hospital, conseguir recuperar aquela dívida sozinhos, com actos de gestão. Com a abertura do Beatriz Ângelo perdemos receita de forma brutal e ficou cá a despesa, que ronda 400 milhões de euros/ano. Não quero que o Governo me ajude a 100%, temos que conseguir resolver metade da dívida. Quando chegámos, também não havia dinheiro para investimento, mas decidimos avançar com um plano de 5 milhões no primeiro ano, passámos 10 milhões em 2015. Agora, estamos a entrar noutra fase, temos um plano de investimento de 75 milhões, dos quais 15 milhões serão de entidades terceiras. Pela primeira vez foi aprovada uma candidatura a fundos comunitários, na área das tecnologias de informação.   

A negociação do contrato-programa para o próximo ano não vai, portanto, ser fácil?
Não, não vai ser fácil. Nós temos capacidade para demonstrar que merecemos 375 milhões de euros pela actividade que desenvolvemos e as projecções que fizemos. Preciso de um contrato-programa adequado à minha produção.

Contam, então, ter uma adenda ao contrato-programa deste ano?
Esperemos que sim, pelo menos será justo em função da produção que temos.

Tem sentido algum tipo de penalização por ser PSD?
Nem por isso, nem por ser do Benfica, nem por ser algarvio. 

Outros temas

Nesta entrevista foram ainda abordados outros temas:

Hospital Pulido Valente
Vai ser um parque de saúde onde há serviços hospitalares, diz Carlos Martins. "Temos previstos 300 mil actos clínicos de responsabilidade hospitalar, como análises, raio X, TAC, meios de diagnóstico, consultas, cirurgias. É um modelo inovador. Deixa de ser um hospital com metade das áreas semiocupadas só para manter portas abertas, passa a ser um parque de saúde."

Estudo que falava em teias de interesses
Sobre o estudo publicado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, divulgado em 2015, que falava em teias de interesses no Santa Maria, o administrador afirma: "É uma história que para mim está encerrada. Nenhum de nós foi ouvido. Recebi nota de que os nossos ofícios [para Ministério Público] foram recepcionados. O estudo remonta a 2006."

Caso de David Duarte
Sobre o jovem que em Dezembro morreu no Hospital de S. José, do Centro Hospitalar de Lisboa Central, na sequência da ruptura de um aneurisma, Carlos Martins afirma: "Não fomos accionados. [Se tivéssemos sido], teríamos encontrado resposta. O nosso modelo de funcionamento era praticamente igual ao do S. João. Estamos a falar de uma casuística baixa mas muito atractiva para os profissionais. Temos dezenas de casos de interacção de médicos. Várias vezes telefonei a directores de serviço. Sempre encontramos resposta, até de figuras de prestígio desta casa."

Falta de anestesistas
“A anestesia é um problema nacional que não pode ser resolvido de forma local. Precisávamos de mais 25 anestesistas. Mas temos conseguido manter todas as áreas de resposta em que anestesia está presente. Vários anestesistas aposentados regressaram."

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