Português dos redactores da PACC não cumpre os requisitos mínimos

Num artigo sobre os resultados da Prova de Avaliação de Conhecimentos e Capacidades (PACC) que o ministério de Nuno Crato impôs a uma parte dos professores contratados, a jornalista Graça Barbosa Ribeiro divulgou esta quarta-feira no PÚBLICO as três perguntas a que menos professores conseguiram responder correctamente. Numa dessas perguntas, aparentemente destinada a avaliar se os docentes percebem o que lêem, pedia-se-lhes que indicassem, entre quatro afirmações relativas a um determinado texto, aquela que interpretava correctamente o que o autor do dito texto escrevera. Só 29,5% dos professores acertaram na solução.

Um resultado catastrófico que, suspeito, se deverá em boa parte à formulação da pergunta. Nos exactos termos em que a questão é colocada, uma das hipóteses tidas como erradas parece-me pelo menos tão defensável como a resposta pretendida pelos autores do questionário.

O leitor desculpar-me-á que lhe tome algum tempo, mas para justificar esta convicção terei de transcrever a pergunta, parte do texto em que ela se baseia e as várias alternativas de resposta propostas.

Comecemos pelo texto, que consiste na tradução portuguesa de um breve excerto da obra The Book: The Story of Printing & Bookmaking, de Douglas C. McMurtrie. A tese central do autor, a julgar pelos parágrafos transcritos, é a de que os livros se dividem em duas categorias principais: os que são úteis e os que têm mérito estético.

“Quando tentamos uma classificação, a distinção parece assentar entre uma obra útil e uma obra de arte literária”, diz McMurtrie. E acrescenta: “Até o tipógrafo mais animado dificilmente podia concentrar muito entusiasmo no embelezamento de um dicionário, numa lista telefónica ou num código de cabo submarino, embora estivesse sinceramente interessado no seu bom aspecto tipográfico.”

Bem sei que são questões laterais, mas porquê ir buscar um texto originalmente escrito em inglês, e numa tradução que provavelmente deixará um tanto a desejar? Não li o original, mas aquele “animado” parece-me estranhíssimo neste contexto, e confesso não fazer a menor ideia do que possa ser, enquanto livro, um “código de cabo submarino”. E não se podia ter arranjado, já agora, alguém que defendesse uma tese um bocadinho menos disparatada? Então um guia de Paris não pode ter mérito literário? E a Ilíada ou a Divina Comédia não servem para nada? E a Bíblia? Faço votos de que McMurtrie não seja um cristão devoto, ou ver-se-á perante um delicado dilema. Ou admite que o Espírito Santo ditou uma obra perfeitamente inútil ou acha que Ele não sabe escrever.

Pergunto-me o que acharia desta estapafúrdia distinção esse exemplo de sensatez que é Gabriel Betteredge, o notável mordomo do romance A Pedra da Lua, de Wilkie Collins, que sempre que se sentia inquieto, ou perplexo, ou hesitante entre dois possíveis rumos de acção, abria à sorte o Robinson Crusoe de Daniel Defoe e nunca deixava de encontrar resposta às suas aflições.

Mas voltemos à pergunta da PACC, a 14.ª da prova, que rezava assim: “Com o objectivo de definir a classificação proposta no segundo parágrafo, o autor recorre ao exemplo do ‘tipógrafo’ para ilustrar: (a) o primeiro termo de uma distinção; b) o segundo termo de uma distinção, (c) os dois termos de uma distinção; (d) um termo não integrado numa distinção?”.

A resposta certa era a “a”. Mais de 70% dos inquiridos erraram, e bem gostaria de saber quantos de entre eles optaram pela alternativa “c”.

Passando à frente aquelas desconcertantes aspas em “tipógrafo”, cujo propósito ignoro, pedia aos leitores que relessem bem a pergunta. Note-se que não se pergunta se os exemplos de obras referidos no texto pertencem ao primeiro, ao segundo, a ambos ou a nenhum termo da distinção. Pergunta-se, sim, o que quis o autor ilustrar com o exemplo do tipógrafo. Aquela proposição “para” (espero que as preposições ainda se chamem assim no pós-TLEBS) não permite outra interpretação.

De resto, antes mesmo de perguntar seja o que for, a própria pergunta começa por afirmar que o autor recorreu ao dito exemplo do tipógrafo “com o objectivo de definir a classificação proposta no segundo parágrafo”. A frase seria mais verdadeira se trocássemos aquele “definir” por “tornar mais clara”, ou algo equivalente, mas o essencial está lá: o autor usou de facto o exemplo do tipógrafo para sustentar a sua peculiar tentativa de classificar os livros em duas categorias: os úteis e (simplifiquemos) os belos. E classificar, note-se, quer dizer dividir em classes, categorias, grupos, segundo um determinado critério ou método. Ou seja, quando a pergunta fala de classificação, só pode estar a referir-se à distinção que o autor intenta estabelecer. De modo que o que a pergunta pede é que confirmemos o que ela própria afirma: que o autor usou o exemplo do tipógrafo para ilustrar a distinção que propõe.

É verdade que ao inventariar algumas obras úteis que o tipógrafo teria dificuldade em tornar belas (uma ambição que, de resto, também parece ultrapassar um pouco o raio de acção de um tipógrafo, que não é propriamente um designer gráfico), o autor só dá exemplos concretos de um dos termos da distinção em causa, para usar a terminologia da pergunta. Mas por que é que dá estes exemplos? Para ilustrar o que é uma obra útil? Não, dá-os para ilustrar a distinção entre obras úteis e belas, mostrando que há obras cujo valor se resume à sua utilidade, e que seria espúrio tentar tornar belas à outrance. Se o objectivo fosse fazer-nos perceber o que era uma obra útil, não seria improvável que adiantasse outros exemplos. E é de crer que tenha escolhido precisamente estes por ter achado que serviam bem o propósito de ilustrar a distinção entre obras úteis e belas.

Logo, à pergunta “para ilustrar” o quê, a resposta menos falsa entre as disponíveis seria a “c”: “os dois termos de uma distinção”.

Será um detalhe, mas convém lembrar que esta prova não era um questionário de férias. Os professores que chumbaram na Prova de Avaliação de Conhecimentos e Capacidades ficaram impedidos de se candidatar a dar aulas no próximo ano. Ora, sabendo que este teste poderia ter consequências tão graves para os inquiridos, seria de esperar que muitos pares de olhos tivessem revisto uma e outra vez estas perguntas, não apenas para verificar que não havia nenhum erro, mas também para garantir que a formulação das questões reduzia quaisquer eventuais ambiguidades a mínimos aceitáveis, já que no domínio da língua, ao contrário do da matemática, nem sempre será possível erradicá-las em absoluto. Mas se não sabem escrever com clareza, seria preferível não usarem testes americanos e permitirem aos professores dar respostas argumentadas.

Não sei quem redigiu este teste, mas pode bem ter sido o autor do extraordinário parágrafo em que o próprio Instituto de Avaliação Educativa enumera os objectivos da PACC. Explica o Iave, na sua página na Internet, que “a realização da PACC visa assegurar mecanismos de regulação da qualidade do exercício de funções docentes, garantindo a comprovação de requisitos mínimos nos conhecimentos e capacidades transversais à lecionação de qualquer disciplina, área disciplinar ou nível de ensino (…)”. Garantir a comprovação de requisitos mínimos nos conhecimentos? Alguém me explica o que é que isto poderá querer dizer? E é esta gente que se propõe avaliar o português dos outros?

Mesmo sem estas trapalhadas, tenho as maiores dúvidas de que faça sentido submeter os professores a um teste desta natureza, como me parece pelo menos discutível que os inquiridos que reprovem na “componente comum” já não possam realizar as “provas específicas”. Não excluo que um excelente professor de português possa cair com alguma facilidade numa ratoeira matemática ou que um professor de matemática competente se deixe iludir por uma armadilha semântica. Será isso motivo para que prescindamos do primeiro em benefício de um professor de português medíocre ou sofrível que goste de resolver os problemas de “sudoku” no Correio da Manhã?

E se se acha escandaloso que alguém possa dar aulas, seja qual for a disciplina que ensina, sem demonstrar que não é inteiramente destituído de raciocínio lógico e matemático, que sabe interpretar um texto e que escreve em português mais ou menos escorreito (se tal coisa é possível quando se é compelido a adoptar o “acordês”), então ocorre perguntar por que é que a PACC só se destina aos professores que não integram o quadro e têm menos de cinco anos de docência.

Sendo óbvio que Crato acha que a formação que o seu próprio ministério preconiza não evita que cheguem ao sistema professores sem os conhecimentos e competências que julga exigíveis (e os resultados deste teste, há que dizê-lo, parecem dar-lhe razão), já não se vê o que leva o ministro a acreditar que a experiência docente suprirá necessariamente essas lacunas. Quem nunca teve queda para a matemática vai passar a tê-la porque deu aulas de português durante cinco anos? E quatro não chegam? Um professor de matemática que tropece na ortografia vai deixar de maltratar a língua logo que ensine equações de segundo grau a um número suficiente de alunos?

Acresce que, como todos os testes deste tipo, a PACC não fornece qualquer informação relevante sobre as competências propriamente pedagógicas dos professores. E correndo o risco de que me considerem um adversário empedernido da meritocracia, preocupa-me um bocadinho menos que um professor de português mostre alguma dificuldade em interpretar gráficos do que ter a dar aulas alguém sem a menor vocação ou jeito para a docência, que não se saiba fazer entender ou seja incapaz de controlar uma turma de vinte e tal alunos.

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