Por que havemos de comer se podemos beber Soylent?

Um engenheiro informático criou uma bebida com todos os nutrientes necessários para substituir os alimentos. O objectivo? Não perder tempo com a comida.

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Comam comida.” O conselho de um dos maiores gurus da alimentação ética e saudável, o norte-americano Michael Pollan, pode parecer absurdo. Não é isso que fazemos habitualmente? Não é isso que gostamos de fazer? Bom, nem todos, ao que parece.

Pollan refere-se àquilo que encaramos como comida, mas que é de tal maneira processado que já só tem uma relação muito ténue com a verdadeira comida. Mas há quem consiga ser ainda mais radical do que a indústria neste processo de afastamento dos alimentos reais: outro norte-americano, Rob Rhinehart, inventou uma bebida que, diz ele, reúne todos os nutrientes necessários e permite-nos sobreviver deixando de comer. Chamou-lhe Soylent e conseguiu não só pôr muitos americanos a bebê-la, como também levar alguns dos principais jornais e revistas do mundo a questionar se será este o futuro da alimentação.

Rob Rhinehart, um engenheiro informático de 25 anos, não gosta particularmente de comida. Ou melhor, acha que tudo o que se passa à volta dela é uma perda de tempo. Em Maio do ano passado, já o britânico Telegraph contava a história do “homem que vive sem comida”. Um ano depois, a revista The New Yorker voltava ao assunto, num longo artigo descrevendo como estavam a correr as coisas desde esse dia de Dezembro de 2012 em que Rhinehart teve a ideia de substituir os alimentos por um composto de cor bege e, dizem os que o provaram (ainda não se vende fora dos EUA), sem cheiro e com pouco sabor.

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O inventor da Soylent, Rob Rhinehart

Rob vivia com dois amigos num pequeno apartamento em São Francisco. Como muitos outros jovens americanos, sonhavam criar um negócio de sucesso ligado à tecnologia, mas as coisas não estavam a correr particularmente bem. O dinheiro começava a esgotar-se e a start-up não arrancava. Essa foi uma das razões que levaram Rob a questionar o dinheiro que gastavam em comida (para além do tempo que perdiam com ela).

Se o que o nosso organismo precisa é de combustível para funcionar, por que não juntar todos os nutrientes essenciais, nas doses aconselhadas, e viver disso? Porquê tanta ineficácia quando se pode ter muito mais eficácia? (Rob tinha também, por exemplo, já resolvido o problema da lavagem da roupa colocando a roupa suja no frigorífico para que as baixas temperaturas aniquilassem os micróbios.)

O processo de pesquisa foi longo. Rob estudou, conseguiu, por vezes com alguma dificuldade, localizar todos os ingredientes necessários, fez várias experiências, aumentando as quantidades de uns, reduzindo as de outros, até chegar àquela que considerou a fórmula certa. E fê-lo correndo alguns riscos, como contou ao Telegraph. Da primeira vez que bebeu Soylent, estava muito nervoso. “Aquilo ia contra tudo o que me tinham ensinado na química. Não se bebe a nossa experiência.”

Mas a primeira tentativa correu muito melhor do que esperava e até o sabor da bebida era agradável — é por vezes descrita como algo próximo do sabor de massa para fazer panquecas. O mais difícil foi quando tentou aumentar a quantidade de magnésio, ou de potássio, ou de fósforo. “De cada uma dessas vezes, fiquei muito doente”, contou, com arritmia cardíaca ou a tensão arterial a disparar.

Foram necessárias três semanas para chegar à fórmula de 39 ingredientes, de vitaminas a minerais, de aminoácidos a antioxidantes. A partir daí decidiu não comer mais nada a não ser Soylent. A decisão teve um profundo impacto — positivo, entenda-se — no seu orçamento. E, garante, no seu bem-estar geral.

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Imagens do vídeo promocional da Soylent, que mostra jovens de ar saudável e activo a consumir a bebida em diferentes situações

Talvez seja altura de explicar de onde vem o nome da bebida — um nome que várias pessoas aconselharam Rob a não usar. A palavra remete para Soylent Green, um filme de ficção científica dos anos 1970, com Charlton Heston, no qual a população mundial se alimenta de bebidas processadas, entre as quais uma chamada precisamente Soylent Green e que, como Heston tenta avisar, “é feita de seres humanos”.

O eco do grito de Heston no filme — “Soylent Green is people!” — não assusta Rob. E a recepção que o novo produto teve no mercado parece dar-lhe razão. Primeiro a curiosidade dos potenciais compradores foi aguçada pelos relatos do próprio Rob num blogue a que chamou Mostly Harmless. Depois, para conseguir financiamento, lançou, com os dois amigos (que entretanto tinham também desistido do projecto ligado à tecnologia) uma campanha de crowd-funding na Internet, trocando Soylent suficiente para uma semana por 65 dólares. Mas, conta a New Yorker, conseguiram em duas horas o que esperavam conseguir num mês. E, por fim, chegaram os investidores de Silicon Valley, que começaram a ver aqui uma oportunidade de negócio.

A repórter da New Yorker acompanhou Rob numa viagem em que ele apresentou a bebida a pessoas que nunca tinham ouvido falar dela. Um homem que passava na rua aceitou experimentar, e até admitiu o seu interesse porque, explicou, fazia parte do grupo de americanos que gostam de estar preparados para a eventualidade de uma catástrofe — e uma bebida como Soylent não só pode ser guardada durante bastante tempo como garante a alimentação num cenário de desastre.

Essa é, aliás, a sua maior vantagem, segundo a crítica de gastronomia do The New York Times. Julia Moskin é uma das pessoas — as outras são um médico, uma professora de ginástica e um sommelier — que aceitaram provar Soylent num vídeo disponível online no site do jornal. Nenhum deles ficou particularmente entusiasmado com a bebida bege. Há quem tente descrever o cheiro como sendo “a cartão”, mas há também quem fale de um sabor “muito saudável”, ou de um “batido de proteínas… com menos sabor”. Substituiria a comida por isto? “Seria muito aborrecido”, responde Moskin. “Não é possível que uma pessoa normal queira beber isto”, diz, mais taxativo, o sommelier Michael Madrigale.

E no entanto há várias pessoas a encomendar Soylent e a consumi-lo. Toda a campanha do produto é pensada para apelar a jovens, enérgicos, activos, que não têm um minuto a perder, e que, por isso, bebem um copo em vez de comerem uma refeição. O site Soylent — Free Your Body, através do qual se pode comprar a bebida, começa com a imagem de um jovem musculado a deitar Soylent num copo, acompanhada pela frase: “E se nunca mais tivesse de se preocupar com comida?”

“A ideia não é substituir a comida, mas encontrar uma melhor alternativa ao que habitualmente comemos, uma forma económica e saudável de fornecermos combustível aos nossos corpos”, explica uma voz off. De seguida, aparece o próprio criador do Soylent defendendo a ideia de que “a comida é feita de químicos e pode ser reduzida” a isso.

A voz off continua, explicando que, “ao contrário da maioria dos outros alimentos, que dão prioridade ao gosto e à textura, Soylent foi pensado para alimentar o corpo da forma mais eficiente possível”. E que com apenas três minutos de preparação liberta-nos o tempo habitualmente gasto na preparação das refeições e na limpeza da cozinha para outras actividades: trabalho, desporto, lazer.

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O produto chega aos clientes na forma de um pó (com validade de dois anos), que deve ser misturado com um óleo (de peixe e de canola), também fornecido pela empresa, e com água — um pacote é o equivalente à alimentação para um dia. Na composição entra uma longa lista de componentes, proteínas, vitaminas, sais minerais, hidratos de carbono, antioxidantes, etc. Para além do produto oficial, surgiu já uma “comunidade DIY”, pessoas que partem da lista de ingredientes — tornada pública pela empresa — e fazem a sua própria mistura em casa, podendo adaptá-la às necessidades de cada um.

É precisamente a ideia de que a comida pode ser reduzida a um conjunto de químicos que o nutricionista José Camolas questiona. Professor de Bioquímica Metabólica no Instituto Superior de Ciências da Saúde Egas Moniz, começa por esclarecer que uma bebida como a Soylent não representa nenhuma inovação extraordinária. “Trata-se de uma tentativa clássica, muito ligada por exemplo às viagens espaciais. Há um pouco essa ilusão de que é possível, através de um conjunto de nutrientes, substituir a alimentação.” Mas o facto é que isso é muito redutor, defende.

As doses diárias recomendadas são pensadas integradas em alimentos, explica. “Sempre que tentamos usar um nutriente isolado, como acontece com o uso de suplementos alimentares, verifica-se que não tem o mesmo efeito protector que quando o nutriente vem integrado nos alimentos. Um alimento é muito mais do que a soma dos seus nutrientes.”

Sabe-se hoje, diz o nutricionista, que a qualidade da flora bacteriana intestinal é muito importante para a saúde, tendo influência até ao nível de outras doenças, nomeadamente as cardiovasculares ou cancros. E, para que essa flora se desenvolva de forma saudável, é importante ingerir alimentos. “Os criadores dessa bebida podem até introduzir fibras solúveis, mas é mais difícil incluírem fibras insolúveis, que são muito importantes.”

Não podemos fazer a bebida perfeita porque há muita coisa que ainda não sabemos sobre como funcionam os alimentos. “Um alimento é uma matriz de componentes que ainda estamos longe de compreender. Descobrimos os antioxidantes, por exemplo, mas não entendemos toda a importância que eles têm nas doenças cardiovasculares, na diabetes. Se o organismo tiver falta de um determinado antioxidante, ele comporta-se de uma maneira, mas, se tiver a quantidade certa, ele pode até ter o comportamento oposto.”

Além disso, uma fórmula única não pode ser boa para homens e mulheres, no Verão e no Inverno, no Pólo Norte e em África. “A interacção entre os alimentos e o organismo é muito complexa e muito individual.” O problema não é o curto prazo, diz ainda José Camolas. “Não tenho dificuldade em aceitar a ideia de que alguém possa viver um ano com base numa bebida dessas. Mas tenho dúvidas de que consiga viver livre de doenças toda a vida.”

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E, mesmo que o problema da saúde não se colocasse, faria sentido substituir a nossa alimentação por Soylent? Para a crítica do The New York Times, o que a bebida faz é “tirar todo o prazer, toda a variedade, tudo o que é interessante na comida”. Rhinehart tem uma resposta para isso também. Diz ele, citado pela New Yorker, que o consumo de Soylent destina-se apenas a substituir as refeições vulgares; quando quisermos usar a refeição como um momento de encontro e de convívio, como um acto social, podemos fazê-lo em torno de alimentos verdadeiros — e não de um copo com uma bebida cor de areia, sem cheiro nem sabor.

Até porque, como diz o sommelier convidado pelo jornal norte-americano: “Se isto fosse a única coisa ao cimo da terra que nos permitisse sobreviver, então para quê viver?”     

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