Pobres têm “limitações fortes no acesso” a cuidados de saúde

Relatório do Observatório Português dos Sistemas de Saúde é apresentado nesta quarta-feira. Desigualdade entre ricos e pobres na hora de aceder a uma consulta, cirurgia ou de comprar medicamentos é um dos principais alertas.

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20% dos mais pobres deixaram de aceder a consultas ou tratamentos devido a dificuldades financeiras Rui Gaudêncio

“Quanto mais doente mais pobre, e quanto mais pobre mais doente.” A doença e a pobreza andam de mãos dadas e, na altura de aceder a cuidados de saúde, o caminho é mais difícil e demorado para quem tem rendimentos mais baixos. Este é um dos principais alertas deixado no Relatório Primavera 2017, do Observatório Português dos Sistemas de Saúde (OPSS), que será apresentado nesta quarta-feira, e que descreve que o acesso a serviços como consultas de especialidade ou de medicina dentária tem uma relação directa com os ordenados das famílias.

O documento Viver em Tempos Incertos – Sustentabilidade e Equidade na Saúde, que será apresentado na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, começa por fazer uma avaliação das principais políticas seguidas pelo Ministério da Saúde neste ano e meio de Governo. José Aranda da Silva, um dos coordenadores do OPSS, salientou ao PÚBLICO que, em linhas gerais, o ministro Adalberto Campos Fernandes tem “tido uma elevada taxa de cumprimento das medidas que apresentou”.

O antigo bastonário da Ordem dos Farmacêuticos dá como exemplo algumas “medidas de reposição de justiça”, como a redução das taxas moderadoras ou a disponibilização de mais serviços nos centros de saúde, como dentistas, psicólogos e nutricionistas. No entanto, Aranda da Silva diz que isto não chega para garantir igualdade e alerta que “estão a ficar para trás mudanças urgentes e mais estruturais, como é o caso da reforma hospitalar ou da aposta na melhoria da literacia dos cidadãos”.

Reforma não está a ser feita

Para o investigador, o facto de as urgências continuarem a ser a porta de entrada nos hospitais é um dos exemplos de que a reforma não está a ser feita e de que a mensagem de que os utentes devem ir primeiro ao centro de saúde não está a passar. Este desconhecimento dos cidadãos, explica o especialista, acaba por influenciar a forma como cada pessoa é capaz de se movimentar nos serviços de saúde.

Os investigadores trabalharam os dados do Inquérito Nacional de Saúde de 2014 para perceber em que medida é que o rendimento influencia a utilização dos cuidados de saúde e perceberam que quase 20% dos mais pobres deixaram de aceder no ano anterior ao inquérito a consultas ou tratamentos por dificuldades financeiras. Entre os mais ricos o valor não chegava aos 5%.

Nos cuidados dentários o valor entre os mais pobres disparava para 50%, enquanto nos mais ricos não chegava a 10%. Mesmo para os cuidados de saúde no geral, 19% dos mais pobres têm dificuldades no acesso, contra 4% dos mais ricos. As pessoas com rendimentos mais elevados “têm uma probabilidade significativamente inferior de esperar por uma consulta, em comparação com as pessoas no rendimento mais baixo”.

“Não existem apenas limitações fortes no acesso, como também estas limitações afectam de forma desproporcional os mais pobres”, frisa o relatório. Aranda da Silva explica que os dados dizem respeito ao acesso tanto ao Serviço Nacional de Saúde (SNS) como a privados. No entanto, lembra que a grande maioria dos serviços ainda são públicos. “Regra geral, as pessoas com mais rendimentos sabem mexer-se melhor no SNS e conseguem consultas e tratamentos mais rapidamente. E quando não conseguem têm mais frequentemente seguros privados ou mesmo ADSE. Os pobres têm mais problemas tanto no acesso como na própria utilização do SNS”, diz.

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“É mais fácil um alemão manter-se saudável”

O farmacêutico lembra que o problema do SNS, nomeadamente das listas de espera, foi agravado com os cortes durante o período de intervenção da troika. Aliás, o relatório destaca que “a percentagem do financiamento público dos cuidados de saúde prestados à população portuguesa (66,0%) tornou-se em 2014 das mais baixas da Europa”, com os portugueses a estarem entre os que mais pagam directamente do seu bolso quando precisam de cuidados de saúde, nomeadamente em medicamentos. “O peso dos gastos privados é o principal factor de agravamento da desigualdade”, insiste-se.

“É mais fácil para um alemão ou holandês manter-se saudável do que é para um português”, reforça o OPSS, que dá como exemplo que “em Portugal apenas 55% da despesa com medicamentos é publica, em comparação com a Alemanha (83%), a França (71%) e o Reino Unido (66%)”. Mais uma vez, Aranda da Silva fala numa “erro de estratégia”. Porquê? O adiamento dos cuidados de saúde pode levar a um agravamento do estado de saúde das pessoas que, chegando mais tarde aos centros de saúde e hospitais, podem gerar ainda mais despesa.

O relatório coloca o dedo noutra ferida – os entraves à contratação de mais profissionais de saúde para o serviço público. “As restrições nas admissões de profissionais é o maior problema com que o SNS está confrontado. Menos profissionais que o recomendado implica menor disponibilidade para praticar actos técnicos de saúde que consequentemente se traduzirão em maior morbilidade, mortalidade, reinternamentos, aumento da taxa de infecção, maiores tempos de espera e de listas de espera”, lê-se no documento. Os investigadores reconhecem o esforço para “reverter” este problema, mas dizem que as medidas ainda são insuficientes.

Por isso, nas recomendações que deixa ao Governo, o OPSS sugere a criação de orçamentos plurianais para a saúde, que permitam fazer um verdadeiro planeamento das necessidades, devendo incluir mais cidadãos em organismos consultivos, nomeadamente nos cuidados de saúde primários. Depois, insiste-se na importância de garantir que as pessoas tenham um acesso equitativo ao SNS, apelando-se a que a tutela aposte numa análise criteriosa dos novos investimentos que faz em equipamentos e tratamentos, acompanhando com estudos os resultados que tiveram de facto na melhoria da saúde das populações. Apostar numa melhor articulação entre centros de saúde, hospitais e cuidados continuados é outra das conclusões do relatório.

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