Para que serve um sonho?

Se eles não são nem aves nem bolas de sabão (e, muito menos, um balão ou, mesmo, um avião), para que serve um sonho? Para voar?...

Os sonhos fazem mal às crianças! Porque isso faz com que tudo aquilo que se passa com elas não dependa sempre da vontade dos pais. E isso é mau! Porque assim sonham com a professora, num dia trapalhão, a gritar com elas ou, depois de escutarem uma conversa sobre a morte, acordam sobressaltadas com terror de que isso possa, também, acontecer a quem as ama. E elas deviam ser muito mais distraídas do que são!

Os sonhos fazem mal às crianças! Porque, quando sonham, ficam vulneráveis, e muito entregues a tudo aquilo que elas sentem. E se, às vezes, riem, durante os sonhos, parecendo felizes mesmo a dormir, também choram e se assustam e acordam assarapantadas com medo de que tudo aquilo com que sonham seja verdade. (E, realmente, é! Porque ninguém sonha com coisas que não sinta, que não tenha já imaginado ou, até, sentido). E isso é mau! Porque, assim, algumas crianças barafustam e se atarantam, utilizando manhas e manias, e podem ganhar um medo que passa a engasgá-las, todas as noites, em relação ao seu dormir. E é mau, ainda, porque há crianças que têm terrores nocturnos (onde falam, se agigantam e esperneiam, tudo sem que abram os olhos, tudo sem que deixem de dormir), parecendo até um bocadinho "possuídas" por algum diabo dos sonhos, para que, logo a seguir, respirem fundo e se virem para o lado, dormindo como anjos, como haviam feito até aí.

Os sonhos fazem mal às crianças! Porque neles tudo se mistura. O mau feitio da mãe. Um ou outro dos bonecos do quarto delas (que parece ter ganho vida própria e se põe, meio abelhudo, por ali a bulir). Um menino que, em vez de voar, teimava ser vento. E uma fábrica de crianças atiladas para onde iam todos os meninos que se esgadanham com birras. E isso é mau! Porque os bonecos são sossegadinhos; não falam e não se mexem. E, mesmo quando andam pelas nuvens, não há meninos que voem. E a haver fábricas de alguma coisa, na vida de todas as crianças, talvez só haja mesmo fábricas de teimosia. Para além, é claro, de todos sabermos que as mães, nem a dormir, têm mau feitio...

Os sonhos fazem mal às crianças. Porque elas se perdem em histórias sem pés nem cabeça. E em heróis que, em vez de serem um exemplo de boas maneiras, mais parecem ser campeões da malandrice. E baralham tempos, pessoas e lugares. E isso é mau! Porque, nos sonhos, nem tudo é, exactamente, aquilo que parece. E porque a cabeça das crianças devia ser um lugar arrumado e, até, concertadinho, onde não houvesse pensamentos pelo ar nem ideias amontoadas, umas sobre as outras. Porque assim, no meio de tantas coisas atabalhoadas, o que vai ser da cabeça delas? Quem pode conseguir escapar, com ela no lugar, a tamanha algazarra e a tanta barafunda?

Os sonhos fazem mal às crianças. Porque, quando sonham a dormir, se passeiam sozinhas pelo seu pensamento e, acham os pais, elas podem-se perder. E quando sonham acordadas, parecem ficar na lua. E, se lhe ganham o gosto, não há quem as ponha de pés na terra e, com isso, não há quem as faça crescer.

E se há sonhos que fazem mal, os piores de todos, são os pesadelos; os sonhos maus. (Por mais que os amigos dos sonhos não gostem mesmo nada de os chamarem assim...) Porque neles se pespegam histórias assustadoras e personagens horrendas (que, por vezes, mesmo não se parecendo com elas, lhes lembram pessoas conhecidas). E põem as crianças a correr sonho-abaixo e sonho-acima. E, quando alguém, ternamente, lhes diz: "vamos lá, seu dorminhoco, são horas!...", tem-se tanto medo que nada daquilo seja só um sonho que, depois de se hesitar muitas vezes, se abre um olho (só mesmo um!), devagarinho – não sem que, antes, se deixe de tocar, ao de leve, na cara da mãe – para perceber se ela tem mesmo os dois olhos no lugar ou se, debaixo daquela voz aconchegante, não estará um monstro verde, babando-se antes de as comer.

E depois – muito pior! – há crianças que costuram os seus sonhos, em surdina. E matutam neles – horas a fio – sem ninguém o saber. E isso é mau. Porque constroem projectos. E lutam, com garra e com ternura, todos os dias, por eles. E isso é mesmo muito mau! Porque, a certa altura, acreditam que nós as podemos ajudar a tecer, com delicadeza, mais uma ponta de mais uma ideia. E parecem bordar tão carinhosamente tudo aquilo em que acreditam que, a determinada altura, elas nos baralham e levam, perigosamente, a tornar nossos os sonhos que eram só seus. E, pior, ainda nos espevitam para que lutemos por eles. E isso é assustador. Ou, até mesmo, calamitoso. Porque assim – tal como elas, quando sonham – ficamos frágeis e comoventes, e deixamo-nos ir por aquilo que é livre e nunca se sabe onde pode ir parar.

Os sonhos fazem mal às crianças! Porque acalentam uma mania muito sua de sermos nós, os pais (e todos os demais que gostam delas) os guardiões dos seus sonhos. Como se, fossem eles quais fossem, não houvesse sonhos – daqueles que se sonham a dormir e dos outros (dos mais perigosos!) que elas sonham acordadas – que não nos merecessem calafrios. E isso é mau! Porque as pessoas, quando crescem, entram nos sonhos e tremelicam. Mas não devia ser assim! Deviam ser senhoras dos seus actos e não dependerem de sonhos nenhuns como se, sem eles, a vida as tivesse levado a desencontrarem-se, para sempre, dos seus brinquedos. E depois, quando crescem, as pessoas já têm pesadelos demais para se perderem em sonhos. Por mais que haja algumas pessoas crescidas - das mais estranhas, todavia - que acham que sem os sonhos se morre, por dentro, aos bocadinhos. E se fica constipado e a fungar por toda a vida. Sem aqueles que se sonham de noite, claro. E sem os outros, dos mais perigosos, que se sonham de dia.

Os sonhos fazem mal às crianças! Porque as levam a descobrir que, de entre as pessoas crescidas que acreditam nos sonhos, algumas delas (estranhas!), trazem os sonhos de algumas crianças para o seu regaço, os aconchegam, lhes falam baixinho e os arejam e, depois – tornando-os seus, também, nem que seja só por um bocadinho – lhes sopram. E isso é mau! Porque lidam com os sonhos como se fossem borboletas que, em vez de se guardarem numa gaiola para serem mirados, comovem quando os ajudamos a ficarem reais e se vêem voar. Há quem diga que essas pessoas crescidas, que ajudam os sonhos a tornar-se reais e a voar, são apanhadores de sonhos. E que são raras e preciosas. E que sempre que se atravessam nos sonhos das crianças, e acreditam nele, voam com eles. Mas isso é mau! Porque essas pessoas acreditam que, quando alguém se perde nos sonhos, eles, os sonhos, são o amigo gigante sem o qual não se aprende a voar. Isto é, a pensar. O que, feitas as contas pela linguagem dos apanhadores de sonhos, é quase a mesma coisa. O que acaba por ser mesmo misterioso – e isso é mau! – é que sejam precisas duas pessoas para se soprar num sonho. Mas, afinal, se eles não são nem aves nem bolas de sabão (e, muito menos, um balão ou, mesmo, um avião), para que serve um sonho? Para voar?...

Psicólogo

Artigo inserido no movimento #SonhaemGrande, lançado no âmbito mais recente filme para toda a família de Steven Spielberg O Amigo Gigante. Todos nós sonhamos porque “O Amigo Gigante” colecciona sonhos que depois sopra para os quartos das crianças, fazendo-as sonhar. Partilhem os vossos sonhos em www.sonhaemgrande.pt.

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