“Pai, tu és o guarda-redes”

A ordem saiu da boca do pequenote e eu “obedeci” sem reclamar, até porque não é todos os dias que um adulto pode atirar-se para o chão da sala ou do pátio dos avós, imitando as defesas dos craques das balizas.

O escritor Javier Marías tem uma frase deliciosa, que frequentemente me vem à memória. Diz ele, adepto fanático do Real Madrid, que ir ver um jogo de futebol “é o regresso semanal à infância”. Costumo lembrar-me desta expressão não exactamente pelas idas ao estádio — um “desporto” que não tenho praticado nos últimos tempos — mas pela experiência da paternidade, que é duplamente um regresso diário (e intermitente) à infância.

Por um lado, passamos uma boa parte do tempo a dar finalmente razão aos nossos pais. Frases como “veste um casaco” ou “põe um boné na cabeça”, que nos irritavam na infância e adolescência, saem-nos agora da boca a toda a hora. Percebemos também o que é dormir mal, porque o(a) filho(a) está com febre, e passámos de autores a alvos de frases como “deixa-me em paz” ou “não sejas chato”.

Digamos que esta é a parte menos agradável deste constante regresso à infância. Bem mais divertido é sermos chamados pelos filhos para as brincadeiras e aventuras que fazem recuar muitos anos até ao tempo em que andávamos de bicicleta toda a tarde, jogávamos futebol de manhã à noite, construíamos carrinhos de rolamentos, coleccionávamos cromos (já agora, alguém tem para troca?) ou simulávamos festivais da canção no meio da rua.

“Pai, tu és o guarda-redes. E eu vou marcar-te um golo como o Cristiano Ronaldo”. A ordem saiu da boca do pequenote e eu “obedeci” sem reclamar, até porque não é todos os dias que um adulto pode atirar-se para o chão da sala ou do pátio dos avós, imitando as defesas dos craques das balizas. O cenário repete-se frequentemente e há dias dei por mim a escorrer suor no jardim do bairro numa futebolada com o miúdo e mais outros três que se juntaram à volta da bola.

Isto lembra-me outra frase deliciosa, contada por Eduardo Galeano, que, no seu Futebol: Sol e Sombra, lembra que um dia perguntaram à teóloga alemã Dorothee Solle como explicaria a felicidade a uma criança. “Não explicaria – respondeu ela. – Dava-lhe uma bola para que ela jogasse.”

Lá em casa, estamos nessa fase em que a bola dispensa os restantes brinquedos. O que me leva a ter cada vez mais certezas sobre a loucura consumista em que vivemos. Já estarão a pensar que aí vem a conversa de velho. Mas não é isso, até porque gosto de ver como a tecnologia e o empreendedorismo nos dão hoje brinquedos com que nem sonhávamos quando éramos crianças, sejam eles areias moldáveis que nos permitem construir castelos de areia no Inverno, sejam drones ou videojogos desafiadores.

O meu ponto é que, entre festas de aniversário, Natais, dias da criança e prendas ocasionais, os miúdos juntam colecções de brinquedos exageradas, para as quais não há espaço nas casas, nem tempo na agenda das brincadeiras. Muitas vezes, porém, é difícil conter a fúria consumista, porque ninguém quer abdicar de dar uma prenda. “A troika anda aí em casa?”, questionou-se um destes dias o tio, quando lhe disse que o aniversariante não precisa de mais prendas, porque já escolheu três. Na verdade, anda. Só que não é uma troika de credores a querer dizer como se gerem as finanças lá de casa, mas sim uma “troika” com o desejo de algum bom-senso nas compras, com a vontade de não ter a casa atulhada de brinquedos e com a aspiração de aproveitar estes momentos para ajudar meninos que realmente precisam. Que tal usar as (quase inevitáveis) festas de aniversário para angariar presentes/coisas úteis para instituições que ajudam crianças? Nós vamos experimentar e aposto que vai ser bom para toda a gente.

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