Os verdadeiros méritos nacionais

É espantoso como no nosso país assim se desperdiça um gigantesco potencial humano que, se tivesse presença na política, mudaria Portugal.

De um modo feliz e orgulhoso, Portugal parece ter vibrado com o que alguns designaram como um fim-de-semana mágico, em que convergiram a visita do Papa pelo centenário das aparições de Fátima, a vitória do Benfica no campeonato e o facto de Salvador Sobral ter sido vencedor do Festival da Eurovisão. O centenário em Fátima é uma singularidade histórica, não um feito. A importância religiosa dessa efeméride é profunda e motivou a decisão da presença papal. Alguém vence anualmente o campeonato de futebol mas os benfiquistas, não necessariamente o país, têm compreensíveis motivos de satisfação. A vitória no Festival da Eurovisão decorre de méritos específicos que, naturalmente, conferem satisfação a todos.

Um dos nossos principais políticos, referindo-se ao sucesso neste festival, sublinhou enfaticamente que essa vitória “é de todos nós”. Aqui começo a divergir. Não, não é uma vitória e um mérito de todos; é uma vitória e um grande mérito de Salvador Sobral, da sua irmã compositora e de uma reduzida equipa de pessoas.

A classe política tem uma selectiva tendência para renegar os seus próprios deméritos e erros (a culpa do que é mau é sempre de outros) e para, inversamente, se apropriar dos méritos alheios individuais (um mérito de um indivíduo é de “todos”). De imediato se usa um êxito individual como um instrumento de marketing político para se projetar a imagem subliminar de que o país está no brilhante caminho coletivo do sucesso. Mas essa associação pode ser perigosamente ilusória, apesar de, em si mesmos, os factos meritórios serem genuinamente elogiáveis.

Noutras ocasiões, subitamente o país recebe notícias empolgadas que testemunham que um atleta, que a generalidade da opinião pública nem conhece (porque nunca lhe deram relevo noticioso), se tornou campeão europeu, ou que ganhou a medalha de prata no campeonato mundial de uma qualquer modalidade. De repente todos prestam atenção, políticos apressam-se a aparecer nos noticiários congratulando o atleta por um destacado feito que “é de todos”. Mas não, geralmente não é. Na maioria dos casos trata-se de alguém que passou muitos anos num doloroso esforço quase solitário, sem fortes apoios nacionais, sem carinho público, sem incentivo político. A pulso, resiste, progride e um dia consegue triunfar, por mérito essencialmente pessoal. Mas imediatamente outros tentam “colar-se” ao duro êxito, capitalizando para si mesmos imagens de sucesso que são daquele que, realmente, cometeu a proeza. Mas aqueles que um dia serão campeões olímpicos são hoje desconhecidos. Um país inteligente apoia os que hoje são desconhecidos mas que têm potencial, em lugar de os ignorar para, depois do sucesso individual, correr a apropriar-se dele. Mesmo atletas como Nelson Évora foram ignorados quando deveriam ter sido apoiados.

Algo idêntico sucede com muitos geniais portugueses que ninguém conhece porque os media e os políticos os desprezam até que, em especial no estrangeiro, se tornem destacados por mérito pessoal na ciência, na tecnologia, na gestão, na medicina, na cultura, na tecnologia, no desporto ou na influência internacional, por exemplo. Ou num festival internacional de canção. Então, após vencerem por mérito próprio e serem reconhecidos noutros países, media e políticos correm a cortejá-los, depois de os ignorarem ou mesmo, não raramente, os obstaculizarem. Distinções e prestigiados prémios internacionais têm sido conferidos por muitos outros países a portugueses por cá ostracizados e ignorados.

Nas televisões portuguesas proliferam programas cujos painéis de intervenientes são sempre basicamente os mesmos, os que estão associados ao longo dos anos a uma cultura política cuja ineficiência se reflete neste país em contínuo marasmo e secundarização. O destaque nesses espaços também parece favorecer estatisticamente responsáveis de imprensa e múltiplos círculos de amigos centrados na capital. O país real, repleto de gente brilhante e genial, é maioritariamente ignorado. Parece um comportamento de deslumbrado provincianismo. É difícil não admitir que, em muitos casos, essa falta de atenção aos muito bons é propositada, para afastar a concorrência.

Mas outros países prestam mais atenção. Muitos dos melhores emigram não por mera procura de emprego mas também porque lá fora são mais apreciados, mais acarinhados, mais respeitados, mais incentivados, mais recompensados. E muitos dos melhores que não emigram trabalham, de cá, para o estrangeiro.

É espantoso como no nosso país assim se desperdiça um gigantesco potencial humano que, se tivesse presença na política, mudaria Portugal, sem milagres mas com um rasgo criativo e uma preparação que a presente classe política e as omnipresentes máquinas partidárias predominantemente não possuem. Mas os portugueses são sistematicamente afastados de conhecerem esse capital humano que, em cada dia, existe. Chega-se ao ponto, insultuoso para os portugueses, de afirmar que os que intervêm com visibilidade são esses porque, imagine-se, “não há mais ninguém”. Mas há. Imensos. Contudo, em geral não são os que são apresentados ao país constantemente nas televisões, nas máquinas partidárias, nas nomeações para os milhares de cargos (pagos com dinheiro dos cidadãos) que esses círculos distribuem e partilham.

A palavra “inovação” tornou-se numa elegante moda nos discursos em Portugal. Fica bem invocá-la em cada meio segundo. Mas é realmente crucial que Portugal atravesse uma maré de (verdadeira) inovação. Na gestão da economia e das empresas, nos novos modelos de negócios, na criação cultural, na educação superior livre de espíritos corporativos que afastam competição de alguns dos melhores, na produção científica verdadeiramente transformadora. E, claro, inovação naquilo que dela mais carece em Portugal — a politica. Como se pode inovar a política se os políticos intervenientes e as “personalidades” promovidas ao colo pelos media são sempre essencialmente os mesmos e outros novos que foram formatados exatamente com os mesmos vícios dos anteriores?

É por contraposição a esta desvalorização do capital humano nacional que é extremamente interessante a genialidade humilde e arejada de Salvador Sobral e de outros como ele, os verdadeiros inovadores apesar de anteriormente desconhecidos. Que o são por mérito e duro esforço próprios, não por obra “de todos”.

O autor escreve segundo as normas do novo Acordo Ortográfico 

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