Os inimigos de Francisco são os cardeais com privilégios

Nello Scavo, jornalista italiano autor de A Lista de Bergoglio – Os que foram salvos por Francisco, faz o balanço de quatro anos do Papa. Fala da adversidade, dos êxitos na abertura da Igreja e da diplomacia do Vaticano.

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Nello Scavo: "Como todos os líderes, Francisco está em perigo" Daniel Rocha/arquivo

“O Papa é o Obama da Igreja Católica.” A frase é atribuída pelo repórter do jornal católico Avvenire à Fox News, a cadeia norte-americana conservadora. “Não me agrada particularmente a sua visão económica”, desabafou o senador republicano John McCain, referindo-se à exortação apostólica Evangelii Gaudium, A Alegria do Evangelho, na qual Francisco criticou as opções económicas que levam à exclusão social com a célebre frase “esta economia mata”. Jeb Bush, filho e irmão de Presidentes dos Estados Unidos, também confessou o seu desagrado: “Não será o meu bispo, o meu cardeal ou o meu Papa a ditar-me a minha política económica.” Já Marco Rubio, governador de Nova Jérsia e rival de Donald Trump à Casa Branca, referiu-se à encíclica Laudato Si' (Louvado Seja), sobre as mudanças climáticas: “Não são os seres humanos os responsáveis pela mudança climática, como alguém nos está a fazer crer.”

Nello Scavo cita estes expoentes do Partido Republicano e recorda editoriais do Financial Times e documentos críticos sobre o pensamento do Papa sobre a banca. A barragem argumentativa tem várias explicações. Scavo, em Os inimigos do Papa Francisco (Esfera dos Livros), refere a crítica ao capitalismo global de Francisco, admite a desconfiança dos Estados Unidos sobre os jesuítas e, sobretudo, a suspeita da América do Norte de tudo e de todos os que vêm da América Latina.

Na sua Argentina, o padre Jorge Maria Bergoglio não era bem-visto pelo clã Kirchner — os Presidentes Néstor e Cristina — nem pelos generais de Videla. A esta lista de desafectos somam-se os "narco" latino-americanos e os traficantes de mão-de-obra. Inimigos não faltam a Francisco.

Por que é que o Papa concitou as críticas da imprensa económica e dos Republicanos?
A encíclica Lauduto Si' trouxe muitos inimigos a Francisco porque não é apenas um texto ecologista, tem repercussões políticas sobre o uso da terra, os bancos, as empresas de petróleo e agro-alimentares. Isso foi confirmado com a eleição do Presidente Donald Trump, cujo pensamento está nos antípodas do que pensa o Papa.

Um Papa que declarou que “essa economia mata”, como o fez na exortação apostólica Evangelii Gaudium, é um Papa diferente. O que lhe criou inimigos no seio da Igreja, porque é uma mudança radical da visão pastoral: é uma Igreja como uma janela aberta, não uma Igreja como poder político pessoal.

Isto criou resistências no interior da Igreja, de um sector que fala de teologia quando o problema não é teológico, mas de poder. Com Francisco, a Igreja é uma Igreja evangélica, de serviço, não de poder. Trata-se de uma mudança substancial: não é uma revolução de Francisco, é uma revolução do Evangelho, da palavra de Deus, porque o Papa Francisco quer uma Igreja para o povo. É uma Igreja com a gente pela gente, não uma Igreja de poder que espera que a gente vá à Igreja. É uma Igreja de proximidade e, nesse aspecto, é uma revolução de proximidade.

Os ataques da direita norte-americana devem-se à diplomacia do Vaticano e ao facto de o Papa ser jesuíta?
O Presidente Trump foi contrário ao acordo dos Estados Unidos com Cuba, que foi um grande resultado para o Vaticano. A forma como os jesuítas são vistos depende de país para país. Em Itália, por exemplo, não têm uma intervenção política directa, mas na América Latina é diferente. Com Francisco, a palavra-chave é discernimento, a capacidade de distinguir o bem do mal. Na Venezuela, os jesuítas estão muito presentes na crise, não como um partido, mas pelo diálogo.

Mas o Vaticano foi recentemente criticado pela oposição a Nicolás Maduro...
O Vaticano não tem uma posição política directa na Venezuela, mas advoga pelo diálogo. Em Roma há uma task force para os pontos críticos no mundo, que trabalha sobre a Venezuela, a Colômbia, Cuba, Irão, Síria, Rússia... É a diplomacia da periferia, a diplomacia de proximidade, de misericórdia, em que o Vaticano aposta sempre no diálogo. O modelo de trabalho de Cuba pode, aliás, ser utilizado para todos os pontos de crise: oferecer o diálogo que é uma missão nova e diferente do Vaticano.

No passado, com João Paulo II e o secretário de Estado Agostino Casaroli, a diplomacia foi muito forte e intervencionista, sobretudo na Europa de Leste. Agora, Francisco tem uma visão global, fala de uma terceira guerra mundial aos bocadinhos, de armas económicas, do uso da terra, não apenas das crises tradicionais.

Até onde pode ir esse diálogo?
A recente viagem ao Cairo é um exemplo de uma tentativa de diálogo, lenta mas necessária, com o islão, com o mundo sunita e xiita, com o Irão, que é muito importante para a questão síria. Espero que neste ponto haja uma revolução diplomática e económica.

Francisco oferece a disponibilidade do Vaticano não como uma alternativa à ONU, mas como ajuda. Por isso, é muito importante o diálogo da ONU com o Vaticano, que torna fundamental o papel do secretário-geral, António Guterres, preocupado com os refugiados, tal como o Papa. Nalguns temas, Guterres e Francisco falam o mesmo idioma.

Como vê a desconfiança europeia para com o Papa?
Francisco pode ser um incómodo para a Europa, embora tenha recebido o Prémio Carlos Magno [uma das maiores distinções europeias] em 2016, mas pode ser o aliado mais importante da Europa. A Europa não é uma realidade de direita, como se viu com a eleição presidencial de Emmanuel Macron.

Há problemas com os refugiados, os imigrantes, e entre a Europa e a Igreja há valores comuns, é necessária uma relação fraterna entre o Vaticano e a Europa. A primeira visita de Francisco, a Lampedusa [8 de Julho de 2013], foi profética porque a imigração é o tema central da Europa. Não uma questão de segurança, mas de desenvolvimento.

A 18 de Setembro de 2014 recebeu no Vaticano, numa audiência de 35 minutos, Alexis Tsipras, líder do Syriza grego, e Walter Baier, coordenador da rede europeia Transform! e até 2006 líder do Partido Comunista austríaco. Este encontro nasceu dos contactos de Tsipras e Baier com os Focolarini, movimento eclesial internacional. Foi uma oportunidade de o Papa abordar as dificuldades que os povos têm na Europa e era a possibilidade de diálogo com uma nova força política europeia.

Francisco recorda à Europa que é cristã, que tem responsabilidades com o colonialismo económico, diferente do tradicional, que criou dificuldades à população em todo o mundo.

Quem são os inimigos do Papa?
Internamente tem vários inimigos. Uns que não são violentos, que pensam que Francisco tem uma mensagem que não é a da Igreja. Alguns cristãos da direita católica questionam o documento do Sínodo dos Bispos sobre a família, porque estão contra os recasados divorciados, mas trata-se de um debate teológico. Os verdadeiros inimigos são os cardeais, alguns expoentes da Igreja no mundo que não têm disponibilidade para mudar o seu estilo de vida baseado no privilégio.

Está a falar do cardeal Bertone, acusado de viver no luxo?
Não penso que o cardeal Tarcisio Bertone seja o mais importante inimigo, mas é um símbolo de como a Igreja do passado não está disponível para uma mudança real. Mas a maior parte do povo e da estrutura eclesial está com Francisco.

Insisto: quais as estruturas que estão contra o Papa?
A realidade é muito complexa, cada movimento tem um debate sobre Francisco. Na Comunhão e Libertação alguns estão contra o Papa, mas não as massas. Por exemplo: o escritor italiano Antonio Socci escreve contra o Papa, mas também contra os líderes actuais da Comunhão e Libertação que estão com Francisco.

E o Opus Dei?
Não sei qual a situação no Opus Dei. Neste momento está ao serviço de Francisco, mas não se pode dizer que esteja todo ao serviço do Papa. Há uma ala tradicionalista que não o compreende, é normal este debate.

Quem está com Francisco?
A Acção Católica Internacional, a Cáritas Internacional, o movimento popular na América Latina, os neocatecumenais que têm em curso um debate sobre a família. Outro movimento que está ao serviço da Igreja é a Comunidade de Santo Egídio, que trabalha directamente com a diplomacia do Vaticano. A maioria dos grupos está com Francisco.

Fala dos que querem a morte do Papa. De onde vêm estas ameaças?
Como todos os líderes, Francisco está em perigo, mas demonstrou que para ele o perigo não é um problema e que o objectivo é o trabalho para o bem comum. Recordo que há poucos dias esteve no Egipto sem carro blindado.

Já na Argentina ele viveu esta situação. O padre Juan Viroche foi assassinado no ano passado por redes de narcotráfico e de seres humanos. Alguns dos implicados foram os mesmos agentes secretos que “trabalharam” contra o padre Bergoglio, que ainda não era Papa.

Refere organizações anarquistas. Não são só folclóricas?
São mais do que folclóricas, sempre pode haver um louco, um lobo solitário, ou psicóticos de grupos que procuram a visibilidade.

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