Os comportamentos destas crianças não cabem no armário dos pais

Não encaixam no padrão comportamental de género que a sociedade padroniza e vê como normal. Rapazes que gostam de brincar com bonecas ou que querem ser bailarinos são apelidados de "maricas". Associação quer lutar contra o preconceito.

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Presidente da AMPLOS, Margarida Faria, quer mais educação sobre género DR

Um jardim-de-infância pode ser, numa dimensão pequena, para gente pequena, uma representação da sociedade. O espaço de brincadeira divide-se, a cozinha para um lado, a bola para o outro – como lá fora, num mercado de trabalho e numa vida doméstica ainda segmentados.

“Eu sempre tive como verdade que era imperioso que os meus filhos se expressassem de forma livre”, fosse com bonecas ou com carros, “aos polícias” ou “às cabeleireiras”. Esta mãe falou ao PÚBLICO mas não quis ser identificada pelo nome, senão como uma mãe que faz parte da AMPLOS - Associação de Mães e Pais pela Liberdade de Orientação Sexual. Há cinco anos juntou-se à associação, num período em que passava “por uma série de inseguranças por causa do filho mais novo.” Tinha dois ou três anos, quando os pais perceberam que João (nome fictício) tinha “comportamentos não normativos”: esse palavrão para uma “criança que simplesmente gostava de coisas diferentes das coisas que os miúdos da idade dele gostam”, explica a mãe.

À medida que cresceu, diz a mãe, João apercebeu-se que havia quem se incomodasse com o modo dele ser. Coisa que João, uma criança de quatro anos, não percebia. Não entendia “os estereótipos de género em que a sociedade achava que ele deveria encaixar”. João era “combatido por ser quem era” na escola, na rua, sempre que não estava em casa. “Foi obrigado a crescer muito depressa”. Cresceu tanto que aos quatro anos a mãe ouviu-o dizer: “Eu fico cansado de ser eu”.

Não está em causa a orientação sexual, “apesar de ser a primeira coisa que as pessoas pensam”, conta esta mãe. “Se o filho é homossexual ou transsexual ou não, o que eu quero é que ele seja feliz e se sinta aceitado. Ele era uma criança.” Das oito crianças que a AMPLOS acompanha, com este tipo de comportamentos, apenas uma tem disforia de género, ou seja, foi diagnosticada como transexual, sublinha a presidente da associação.

Estão apenas em causa os comportamentos, “que são normais, porque normais são todos”, que não são o que a sociedade espera por parte de um rapaz ou de uma rapariga, explica a mãe de João. Uma realidade que fez com que, desde pequeno, João tenha sido alvo de piadas e de comentários discriminatórios não só dos colegas, mas também de educadores de infância e pais de amigos.

“Houve uma família que deixou de vir cá a casa, porque ele gostava de usar as jóias da mãe. Aos seis anos, a avó da melhor amiga dele proibiu a neta de brincar com o meu filho, porque dizia que ele era ‘absorvente’. Houve pessoas que deixaram de estar lá, porque eu não fechava o meu filho num armário.” Nunca impediu o filho de sair de casa, de levar a boneca para a escola nem nunca lhe pediu para se comportar de forma diferente.

Mas há pais que decidem tomar medidas para que em público os filhos assumam comportamentos considerados normais. Os progenitores - quem normalmente está mais perto das crianças – “são, muitas vezes, os primeiros a julgar”: “nas reuniões da AMPLOS ouvimos histórias de pessoas que diziam aos filhos para se portarem bem lá fora, que, quando chegassem a casa, já podiam brincar com as bonecas”, descreve esta mãe.

O julgamento da sociedade

“Estas pessoas vivem muito estas questões pelas apreciações que a sociedade faz”, afirma Sónia Lopes, psicóloga da Associação do Planeamento da Família (APF) que, paredes meias com a AMPLOS, partilha muitos dos casos que chegam à associação. “É necessário desconstruir esses valores, os preconceitos que têm e que, na maioria das vezes, não são maldosos.”

A maioria chega assustada, “todos os pais têm medo do preconceito aos seis anos de idade”, destaca a presidente da associação.

É nestas reuniões que os pais AMPLOS se encontram. “Ainda são poucos”, mas já há um grupo que se reúne na zona de Lisboa, no contexto do projecto Espelho Eu, lançado no início de Junho em parceria com o Instituto de Apoio à Criança (IAC). Um ambiente informal, onde os pais contam as suas experiências e aprendem com as dos outros. “É um sítio onde encontramos apoio”, refere Margarida Faria. “Ainda há muitos pais que se sentem perdidos, como eu estava há uns anos. Agora há mais informação, mas na altura não encontrei nada sobre a expressão de género na infância”, diz esta mãe.

Tentam desconstruir os preconceitos uns dos outros, para puderem fazer o mesmo lá fora, junto dos educadores e dos amigos. “O que mais nos assusta, enquanto pais, é o tempo não familiar. Como é que eu posso estar descansada ao deixar o meu filho num sítio onde sei que não o aceitam?", questiona Margarida.

Foi para chegar “a quem não vive e não aceita esta diferença” que, como estas crianças, o projecto não se quis dentro de quatro paredes. “Espelho Eu” é também uma plataforma de informação no Facebook que pretende educar e informar sobre a expressão de género na infância. Pretendem acima de tudo “que a falta de informação deixe de ser uma desculpa para validar a discriminação”, explica.

Rapazes: "as primeiras vítimas"

Como os pais de João, outras sete famílias encontraram apoio na associação. São todos pais ou avós de rapazes, “não fosse a nossa sociedade tão machista, onde se questionam ainda mais os comportamentos de crianças do sexo masculino”, refere Margarida. São logo rotulados como “afeminados”, e é um saltinho até que os considerem “maricas”. “A homofobia tem por base esta ideia fixa dos comportamentos afeminados”, acredita a presidente da AMPLOS.

A discriminação começa cedo para todos os menores que a sociedade não vê como normais. “Na associação, quando falamos sobre a infância com pessoas que são efectivamente transexuais, a maioria conta que foi um ‘martírio’, o que é uma palavra muito forte para aqueles que deviam ser os anos mais felizes das nossas vidas”, conta.

A protecção da identidade da mãe com quem falamos não lhe é estranha. “Este é o grupo da AMPLOS no qual mais dificilmente os pais dão a cara”. Têm medo de expor “ainda mais” os filhos. “Não os quererem estigmatizar” e sabem que os comportamentos podem mudar com a idade. 

João, porém, não esperou. Ainda no infantário quis dizer ao mundo que queria ser bailarino. A educadora não hesitou e disse que esse futuro era “para maricas”, conta a mãe.

“Exclusão que não escolhe idades”

E se o trabalho com estes pais já começou, a associação acredita que há “ainda um grande caminho a percorrer” juntamente com os educadores e os professores. A AMPLOS pede, há vários anos, um relacionamento próximo entre as escolas e a educação para as questões de género “que deviam ser tratadas mesmo no pré-escolar”. Relacionamento que a APF promoveu durante vários anos, incluindo quando deu formação às escolas para o ensino de educação sexual. Mas Sónia Lopes, a psicóloga da associação, reconhece que “nas escolas, a discriminação existe porque ainda não se pensa no assunto”.

Após a entrada em vigor deste ensino de forma autónoma, a APF tem vindo a desenvolver projectos alternativos “sempre próximos das escolas” com recurso a outras linhas de financiamento. No início do mês passado, entregaram na Câmara de Lisboa a candidatura “Escolas Amigas da Igualdade”, um projecto que visa actuar sobre a estrutura das escolas lisboetas: “Já não se trata de acções isoladas. É necessário mudar a própria estrutura, com mudanças nos estatutos e adopção de linguagem mais inclusiva”, refere Sónia Lopes.

É por isso que Margarida Faria não poupa elogios ao “importante esforço de relacionamento” entre Secretaria de Estado para a Cidadania e a Igualdade e o Ministério da Educação. Estão a trabalhar em conjunto na elaboração do Plano de Educação para a Cidadania, cujas directrizes serão conhecidas no decorrer deste mês. A AMPLOS conta que este documento inclua questões sobre a identidade de género na infância, como prometido pela secretaria de Catarina Marcelino, no início de Julho, depois de uma reunião com esta associação.

A presidente da AMPLOS acredita que este é “um primeiro passo importante” para que se reconheça que “as crianças com comportamentos não normativos e as crianças transexuais existem, assim como a discriminação contra elas nos estabelecimentos de ensino”. “Há que perceber que a exclusão que não escolhe idades”, sublinha.

Propostas como a possibilidade das crianças mudarem o nome nos seus registos escolares para “aquele com que se identificam”, antecipam aquilo que a AMPLOS e a APF esperam: uma revisão da lei de identidade de género que inclua a questão da infância, buscando inspiração nas propostas que estão ser estudadas em país como a Argentina e o Chile.

“As escolas acham que, porque são oficiais, têm que chamar o nome que está nos papéis e não aquele com que a criança se identifica e que virá provavelmente a ter mais tarde. Não é por maldade, mas não vêem muitas vezes este sofrimento”, lamenta a psicóloga da APF.

“A associação espanhola Crysallis, em três anos, recebeu 400 famílias de menores transexuais. Não acreditamos que esta situação esteja muito longe da portuguesa”, afirmou Margarida Faria, reforçando a necessidade de debate público sobre este tema para que estes pais e estas crianças saibam que não estão sós e que podem encontrar ajuda.

Texto editado por Pedro Sales Dias

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