Os borralheiros

Caros Miguel e Henrique, venham ao interior, mas venham sem as armas a tiracolo ou o lencinho para enxugar a lágrima fácil.

“A tradição é a transmissão do fogo, não a adoração das cinzas”
Gustav Mahler

Caros Miguel Sousa Tavares e Henrique Raposo, imagino que sabeis o que é o borralho, aquele amontoado de brasas que permanecem incandescentes por baixo das cinzas após a passagem do lume. Podem ficar ativas durante muito tempo. Numa lareira é agradável porque mantêm o calor, já num incêndio florestal podem ser responsáveis por reacendimentos. É exatamente por causa dos incêndios de junho passado e do muito que se tem dito e escrito na comunicação social que venho ao vosso encontro. Para ser mais preciso, é por causa do que ambos escreveram nas vossas colunas de opinião do jornal Expresso no passado dia 1 de julho, acerca do interior e do mundo rural (*).

O interior parece fadado a ser lambido sazonalmente pelo fogo, coincidindo de forma predestinada com a modorra noticiosa da época balnear, salvando-a com a dose certa de dramatismo e ação em direto. A cada ciclo de cinco anos os incêndios assumem proporções gigantescas, colocando vidas e casas em risco, o que também está dentro das previsões de uma máquina oleada à base de resinosas conivências e preconceituosas boçalidades. Aquilo que se escreve sobre o interior rural português, sempre por ocasião de grandes incêndios florestais, é uma das peças dessa engrenagem. Reduzir o interior, como Miguel Sousa Tavares o fez, a uma coutada de caça e a um “depósito de velhos [...] onde os únicos sinais de vida só acontecem no ‘querido mês de agosto’”, ou lembrar, como fez Henrique Raposo, as suas raízes familiares que só a muito custo se libertaram da “masmorra”, representa o que fica incandescente lá por baixo, a laborar vagarosamente mas de forma persistente nas mesmas ideias pré-concebidas e velhos anátemas. Basta um vento mais forte do mediatismo para que toda a linha que fende este país de cima a baixo, separando o litoral do interior, se acenda.

Ninguém quererá decerto escamotear a pobreza e a dureza dos contextos e tempos, mas uma simplificação da verdade é fraco argumento para uma opinião. Ignorando a curva demográfica de que, em geral, todo o Ocidente padece até nas grandes urbes, com semelhantes consequências para a solidão e abandono dos seus velhos, passando pela subtração de qualquer possibilidade de um tempo feliz aos homens e mulheres rurais de outrora, Miguel e Henrique votam o interior a um fatalismo de parangona. (Seremos mais felizes nas cidades de hoje?) Talvez o resultado mais gravoso seja para o meio rural do presente, completamente ignorado... ou talvez simplesmente lhe falte o potencial calorífico para incendiar jornais e trincheiras. Para os que lá estão, seja porque resistem como qualquer homem e mulher nesta vida, seja porque lá decidem livremente viver e trabalhar, fazem-no apesar de tudo noutro lugar. Esse interior minado por incêndios e mistificações acaba por ver a polis recusar-lhe cidadania naquilo que mais importa: o fogo que anima, o direito a ser e a ter voz própria. O que lá se faz e porquê, o que representam essas terras hoje e aquilo que querem dizer ao mundo é abafado pelas cinzas que devem cobrir o borralho e mantê-lo ativo para quando soprar o vento dos grandes temas fraturantes.

Caros Miguel e Henrique, venham ao interior, mas venham sem as armas a tiracolo ou o lencinho para enxugar a lágrima fácil, dispam-se de clichés e atravessem a bolha urbanita. Venham ver a realidade e fazer justiça aos que cá são e fazem. A postura de borralheiro até pode ser mais confortável e ecoar numa legião de indefectíveis acólitos, mas os incêndios que provoca são bem mais fundos e perenes do que aqueles que consomem a floresta.

(*) Perdoem o atraso desta resposta mas, como devem imaginar, o trabalho de apagar as consequências dos incêndios é também ele bastante exigente.

O autor escreve segundo as normas do novo Acordo Ortográfico

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