Os bastidores do SNS

Ao longo de três semanas internada num grande hospital de Lisboa, fui ganhando um especial sentido do tempo. Na azáfama dos dias e no silêncio das noites, que ali correm sem pausas nem paragens, fui aprendendo os sinais dos bastidores, em que milhares de pessoas anónimas nos cuidam, nos guardam, nos protegem. Cumprem as prescrições dos médicos e cumprem a vocação da misericórdia, em modo de assistência e tratamento àqueles que sofrem. De tantos que são os seus nomes próprios, é difícil distingui-los a todos e a todas, bom exercício de concentração é lembrar-lhes as feições e personalizá-los, na circunstância em que somos doentes e nos tornamos um humano objeto, centro absoluto da sua atenção. Dizem-me que são cerca de 120 mil no país inteiro os enfermeiros, os auxiliares, os administrativos nos hospitais e centros hospitalares integrados na rede de saúde pública.

Não conheci os invisíveis que se ocuparam de mim, não sei quem registou a história clínica do meu nome em teclas batidas de computador, sobre o tratamento, a consulta, a receita, o exame, a análise. Conheci, sim, a leveza de certas mãos das enfermeiras que me trataram. Contei por centenas os seus procedimentos no total dos dias, as agulhas, as horas certas das medições, as perguntas sobre a dor e as desordens do corpo, os medicamentos, a troca dos soros e substâncias, o rigor e a responsabilidade de cada gesto cumprido. E em outras funções no hospital, admirei a dureza das simples tarefas de alimentar, servir dietas, separar sabores, saciar sedes. Ou o outro trabalho de desinfetar, limpar, arrumar, ajeitar, aliviar, trocar, bem que faz sentido o nome profissional de Auxiliar para quem assim vem junto de uma cama ajudar o corpo doente, entregue, dependente. É essa imensidão de pessoas que têm vidas pessoais de esforço e sacrifício, anónimas personagens, que são os meus bastidores de palco, no cenário em que tudo se salva e acontece. No outro espaço da rua, a sua existência não é conhecida nem reconhecida.    

Como em retiro espiritual, desliguei-me de imagens do exterior, de notícias e telejornais, a realidade do hospital apagou o que acontecia lá fora. E neste mundo dividido entre a boa saúde e a doença, enquanto se celebrava a importância de António Arnaut na sua luta pela criação do SNS em 1979, mais ainda acredito que muitos de nós, portugueses, lhe devemos a nossa sobrevivência, e todos, sem distinção de classe social, lhe devemos o direito à assistência. Filha de pai médico, desde muito pequena o acompanhei nas suas visitas aos doentes de medicina interna no Hospital dos Capuchos, de que foi diretor. Eram visitas de humanidade, em que aprendi a olhar as pessoas em sofrimento, em ausência de sentidos, em esvaimento de esperança. Eram camas alinhadas em enfermarias imensas, sombrias. O meu pai pousava a mão naqueles corpos, media o mal, receitava alívios. Ele atendia a gente de Alcochete que pedia ajuda, os da estiva, os do sal, os da pesca no Mar do Norte.

Agora, no hospital, retomei, lúcida, as memórias do tempo em que uma primo infeção nos pulmões era caso comum e tuberculose era forte ameaça. Uma leve febre era gripe, era um possível sinal de uma pneumonia, era uma quase garantia de morte. Por estes dias, também aprendo que Portugal ocupa entre 188 países o 22º lugar de qualificação em termos de saúde pública e proteção social. Apesar dos desacertos políticos e económicos, das questões salariais, da austeridade, espero que o SNS resista às adversidades. E que os bastidores recebam um merecido foco de luz.

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