Olhar direito por linhas curvas

Depois de terem sido convencidos a comprar televisores de ecrã plano, os portugueses estão a ser agora persuadidos a trocá-los por ecrãs curvos. Não é uma brincadeira, a técnica é assim mesmo, evolui, tal como evolui o comércio e a vontade de vender novidades aos que podem pagar por elas. Dos velhos televisores que pareciam aquários, com cinescópios de barriga para fora, passámos aos elegantes novos aparelhos onde o usual ecrã plano passou a estar ligeiramente curvado para dentro. Os vendedores não têm poupado incentivos à compra: além da definição (Ultra HD, que duplica as linhas até aqui oferecidas pelo Full HD), diz-se, entre outras coisas, que esta será a melhor forma de compatibilizar a visualização do ecrã com a visão humana.

Sem entrar no específico domínio deste “olhar direito por linhas curvas”, o seu aparecimento em força no mercado mundial, em 2014, coincide com os 50 anos da estreia em Portugal (a 11 de Novembro de 1964) do filme A Conquista do Oeste, única longa-metragem de ficção feita para um grande ecrã verdadeiramente curvo, a 146º, quase uma semicircunferência. O método, registado como Cinerama, foi criado nos Estados Unidos na década de 50 para (é fácil adivinhar) fazer face ao crescente domínio da televisão. Até porque o cinema, com o advento desta, passara ali de 90 milhões de espectadores por semana em 1948 para 56 milhões em 1952.

Como responder? Com novidade e imponência. Fred Waller, influenciado pela multiplicação de telas no final do filme mudo Napoléon, de Abel Gance (1927), criou um sistema de projecção múltipla que, usado primeiro pela indústria petrolífera em 1939 (onze câmaras, na Feira Mundial de Nova Iorque), acabou por ser aplicado, com grande êxito, como simulador de artilharia: cinco câmaras projectavam movimentos de aviões num cenário semicircular, para onde os soldados simulavam disparos com máquinas que aferiam a sua perícia. Ter-se-ão poupado com tais treinos, diz-se, milhares de vidas.

O sistema de Waller chamava-se Vitarama e, num golpe arriscado, evoluiu para Cinerama (que é um anagrama de American) com o objectivo de mostrar aos americanos, em documentários, o que eles nunca podiam ver daquela forma, desde o Grand Canyon aos rápidos ou às Cataratas do Niagara: as filmagens eram feitas com três câmaras sincronizadas, em arco, de modo a replicar o raio da retina de um olho humano, e a projecção seguia o mesmo processo, com três projecções em simultâneo sobre o tal ecrã curvo, de modo a que pudessem ser vistas, coladas umas às outras, as imagens captadas. Como a indústria fosse reticente, Waller, com apoio de Merian Caldwell Cooper e associado a Hazard Reeves (pioneiro do som estereofónico), Lowell Thomas (pioneiro e explorador) e Michael Todd (produtor), estreou o processo a 30 de Setembro de 1952, num cinema da Broadway modificado para o efeito. This Is Cinerama, o filme demonstrativo da novidade (que, no som, recorria a sete colunas, antecipando o actual surround) foi um sucesso absoluto. Tornou-se o filme mais visto nos EUA nesse ano. Entre outras aventuras, punha o espectador no lugar de quem rodopia numa montanha-russa e essa sensação de vertigem foi um delírio. Depois entrou na aventura do Cinerama Paul Mantz (1903-1965), um aviador que era uma verdadeira lenda, adorado na América. Graças a ele, milhões de americanos viram nos cinemas cenas inesquecíveis filmadas pelo novo sistema, como descer em voo picado ao Grand Canyon, por debaixo de pontes ou até ao interior de um vulcão em erupção, feito que ia custando a vida a toda a equipa de filmagens. Um pormenor: Mantz, o homem que voava como um louco mas com perícia, tinha vertigens. Mas só fora do avião que pilotava.

Êxito incontestado nas Feiras Mundiais onde se apresentava, o Cinerama era visto pelos russos como uma arma de propaganda americana (havia 174 salas, no mundo) e não tardaram a arranjar um sistema idêntico ao qual chamaram… Kinopanorama. E até ofereceram aos americanos, em plena Guerra Fria, um filme russo destinado às salas Cinerama  dos Estados Unidos: Russian Adventure.

Até que a aventura terminou. Era dispendiosa e já havia imitações: o Cinemascope (a que chamaram o “Cinerama dos pobres”) e até projecções em ecrã curvo mas já filmadas com uma só lente. Um único filme de ficção, monumental, foi todo ele feito e projectado em Cinerama: A Conquista do Oeste (1962). O resto foram imitações. É que não basta, a um ecrã, ser curvo para ser Cinerama, como não basta encolher a barriga para ser magro.

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