O tic-tac das farmácias

A esperança dada pelo Governo é proporcional à ansiedade dos profissionais de saúde e pequenos empresários, em risco de abrir falência.

A farmacêutica Maria da Conceição Vaz Pereira levantava-se todas as segundas-feiras às seis da manhã, dava um beijo aos dois filhos pequenos e metia-se à estrada. Podia cair neve que às 9 horas em ponto abria a porta. Chorou muitas noites com saudades da família, que só via aos fins-de-semana. Mas instalou e manteve durante 26 anos a sua farmácia em Salgueiro do Campo, uma aldeia a 13 quilómetros de Castelo Branco. A instabilidade legislativa e a interminável sucessão de cortes na última década deixaram-lhe os nervos em franja. “Não suportava mais viver na incerteza permanente quanto ao dia de amanhã”, desabafa. Em 2015, trespassou a farmácia antes que pudesse ser tarde demais. Não enriqueceu, mas pagou as contas. Vai viver da reforma de uma vida de trabalho. Com um nó na garganta, mas a consciência tranquila de ter conseguido preservar o serviço aberto.

A crise foi mais cruel para Manuela Teixeira, que em Março de 1974 abriu farmácia na Baixa da Banheira. Ela era outra referência da profissão e o serviço de saúde uma referência local. Outros teriam metido muito dinheiro no banco. Ela nunca se deu por satisfeita. Contraiu empréstimos para investir. Mudou duas vezes para instalações melhores. Materializou o sonho de fazer atendimento personalizado a diabéticos, hipertensos, asmáticos e toxicodependentes. O serviço era garantido por quatro farmacêuticos. A farmácia da Baixa da Banheira era melhor do que a maioria das farmácias de Londres ou Munique. Vieram os cortes. Novos empréstimos, agora pessoais, para pagar à equipa. Só que vieram outros cortes. E outros. E mais outros, aquilo não parava. Começou a ter problemas com os fornecedores. “É dramático abrir as gavetas e não ter lá medicamentos. A farmácia deixava de funcionar”, relatou à RTP. Foi “apanhada pela crise”, consolou-a o administrador judicial. Foi “cedo demais” para ela. Ainda não tinha recuperado o investimento. “Não se culpe, não podia fazer nada”.

Há 549 farmácias em situação de insolvência ou penhora. Este número cresceu 128% em apenas três anos. Praticamente uma em cada cinco farmácias está em risco. O problema é económico: As farmácias foram forçadas a atravessar a crise com margens negativas. Por manterem as portas abertas, 20% ainda têm prejuízo. O montante global da dívida litigiosa aos grossistas está nos 265 milhões de euros. O resultado são gavetas vazias: 1.656 farmácias têm fornecimentos suspensos. Aviar uma receita médica passou a ser um problema. No ano passado, faltaram 57 milhões de embalagens de medicamentos no momento da dispensa.

“Muitas farmácias estão em grandes dificuldades”, reconheceu o ministro da Saúde ao jornal Expresso. O responsável governativo mostrou empenho em materializar uma solução até ao final de Abril, através de um modelo inovador em Portugal, mas praticado na generalidade dos países desenvolvidos. As farmácias podem ser remuneradas pela prestação de serviços, por exemplo aos doentes crónicos, e pela dispensa de receitas médicas. Isso vai torná-las menos dependentes do preço dos medicamentos.

O novo modelo vai materializar um salto organizativo no SNS. Trará ganhos reais à saúde pública e grandes poupanças orçamentais nos próximos anos. Não faltam exemplos disso em todo o mundo. Em Portugal já ficou provado, por exemplo, com os programas de vacinação e de troca de seringas.

As farmácias satisfazem mais de 90% dos portugueses. São eficientes: Praticam as margens de comercialização mais baixas da Europa, só acompanhadas pelas farmácias da Roménia, mas oferecem um serviço alinhado pelos melhores padrões mundiais de qualidade. Cada farmácia tem, em média, três farmacêuticos, rotinados na actualização científica ao longo da carreira. A rede de farmácias também investiu, sempre à frente do tempo, nos melhores instrumentos tecnológicos e informáticos dedicados à segurança e qualidade da dispensa de medicamentos. Estes factos não podem ser razões de falência.

O ministro já não chegou a tempo de evitar a absurda penalização de Maria da Conceição e Manuela Teixeira, abruptamente afastadas da primeira linha de serviço às populações, após décadas de experiência. Mas acendeu uma luz verde de esperança às centenas de farmácias que lutam diariamente pela sobrevivência. Em Trás-os-Montes e no Alentejo, mas também nos centros de Lisboa, Porto e Coimbra. Essa esperança, no entanto, é proporcional à ansiedade dos profissionais de saúde e pequenos empresários, em risco de abrir falência a qualquer momento. Tic-tac, tic-tac. Quando a luta é pela sobrevivência, o tempo faz vítimas.

Presidente da Associação Nacional das Farmácias (ANF)

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