Surf, “uma maneira fixe de ser igreja”

Família norte-americana desafiou família luso-brasileira e família alemã para fundar uma igreja evangélica em Matosinhos. Surfam, partilham uma refeição com pão e vinho, cantam pop-rock cristão e estudam a Bíblia.

Foto

Fatos de surf de vários tamanhos, pranchas alinhadas, uma espécie de bandeira enfiada na areia com os dizeres: “Surf Church”, isto é, Igreja do Surf, “Christian Surfers”, Cristãos Surfistas. Um ajuntamento de homens, mulheres, crianças, com a pele queimada pelo sol e vontade de apanhar ondas.

“A igreja não é o culto, não é o serviço religioso ao domingo de manhã, não é o templo”, diz Troy Pitney, um norte-americano alto, elegante, de cabelos compridos, dourados. “Igreja é o corpo vivo de Jesus na Terra. Os que acreditam em Jesus são igreja. Nós somos igreja. E esta é a Igreja do Surf.”

Nasceu em Portland, Oregon, EUA, há 33 anos. Já foi empregado de bar, enquanto a mulher, Michelle, cumpria o sonho de ser princesa da Disney. Já teve uma pequena empresa de construção e o gozo de dar emprego a amigos numa situação crítica. Trabalha para a Operation Mobilisation, uma organização internacional evangélica destinada a mobilizar jovens para “viver e proclamar Jesus”.

No mapa da Operation Mobilisation, todo o Mediterrâneo é terra de missão. “As pessoas estão desorientadas, carecem de esperança, nós acreditamos que essa esperança está na mensagem de Jesus”, esclarece. “É uma mensagem de perdão, de respeito pela diferença, de amizade. Isso liberta.” Várias famílias prepararam-se três anos na Alemanha para seguir para um dos países mediterrânicos. “Eu escolhi Portugal. Adoro o povo português, a costa portuguesa, o surf.”

Aterrou com a mulher e os quatro filhos em Outubro de 2014. Arrendou uma casa junto ao Bairro da Biquinha, um dos mais problemáticos de Matosinhos, a uns minutos da praia. “Pouco tempo depois, percebi que gostaria de começar uma igreja”, conta. Desafiou Samuel Anjos e a mulher, Cláudia, do Brasil, e Dustin Waters e a mulher, Mia, da Alemanha, a juntarem-se a ele e a Michelle.

Sabe que “Portugal é um país religioso”, mas acredita que “para grande parte dos jovens a religião é irrelevante, é uma coisa dos pais”. Está convencido de que “poucos conhecem, de facto, a mensagem de Jesus”. E quer “partilhá-la com surfistas e outros jovens que não se identificam com a igreja tradicional”. “Não têm de ser surfistas. O surf pode ser só um pretexto. Se as pessoas gostam de surfar, vamos surfar. E vamos usar isso como plataforma para a mensagem de Jesus.”

i-video

Da Austrália para Portugal

Não é uma ideia saída do nada. O movimento “Christian Surfers” surgiu na década de 1970, na Austrália. Pouco a pouco, propagou-se pelo mundo fora. Há uma Igreja do Surf em Hossegor, em França. Troy já a visitou. “Nós achamos que o nome é bom. Provoca conversa. ‘Igreja do Surf?’ ‘Sim! Adoramos surfar e adoramos Jesus. Nós fazemos o que amamos pelos que amamos.’”

Todos os domingos, às 14h, encontram-se na chamada Rotunda da Anémona, na fronteira do Porto com Matosinhos, com pranchas e fatos extra. Passam ali a tarde, ora na água, ora na areia. Proporcionam uma experiência de surf a quem quiser. Por volta das 18h, rumam a casa da família Pitney.

Uns concentram-se na cozinha. Preparam uma refeição simples, que inclui pão e vinho. Outros focam-se na sala. Afastam os móveis e montam mesas e cadeiras de plástico. As crianças Pitney — de sete, cinco, quatro e dois anos — brincam com uns e com outros. Depois, sentam-se todos, comem, conversam, dizem piadas. No fim, uns arrumam a cozinha, outros a sala. E tornam a sentar-se, nos sofás, nas cadeiras ou no chão, uns de chinelos, outros descalços, para cantar pop-rock cristão e estudar a Bíblia.

“É uma maneira fixe de ser igreja”, diz Troy. “Não tenho vergonha de disfrutar a vida”, enfatiza. “Deus não nos pede para sofrer.”

Todo o culto é feito em português e em inglês. Troy até gostava de pregar em português, mas o seu conhecimento da língua é limitado e os membros da igreja gostam de ter o culto em inglês. “A tradução só envolve mais pessoas. Faz com que haja mais gente a fazer parte. Há uma família que tem filhos e diz que as notas dos filhos em inglês subiram desde que eles vêm aqui.”

Amiúde, o tradutor é Filipe Lima, estudante de Psicologia na Universidade do Porto. Teve uma educação católica. “Havia uma maneira certa de fazer as coisas. Não percebia em quê que Deus se relacionava com aquelas práticas. Fui-me desligando. Tornei-me ateu. Achava que via as coisas com mais lógica. Não percebia o papel de Deus na vida das pessoas”, relata ele. “Acho que o que me atraiu foi o ambiente relaxado, jovem, alegre. Depois, comecei a estudar a Bíblia. Às sextas-feiras, reúno-me com o Troy para treinar a tradução. Ele fala-me sobre o que vai falar no domingo.”

O rapaz, de 20 anos, foi trazido por um amigo. E trouxe a namorada, Isabel Oliveira, que acabou agora o curso de enfermagem. “Eu estava numa fase um bocadinho má e ele disse-me para vir, que me ia fazer bem, que ia conhecer pessoas felizes. Vim uma vez e nunca mais deixei de vir”, conta ela. A família, de tradição católica, não achou graça. “O meu pai perguntou-me se eu tinha entrado numa seita! Deve ter pensado que eu andava numa coisa meio satânica.”

Foto
Aos domingos, depois de surfar, rapazes e raparigas juntam-se em casa da família Pitney Nélson Garrido

Ritual estranho?

Troy tem presente o risco de haver quem os veja como uma seita. “O que dizemos a quem pensa isso é: venha e veja. Ao domingo, surfamos juntos, estudamos a Bíblia juntos, cantamos juntos, comemos juntos. Durante a semana, passamos algum tempo juntos, fazemos algo pela comunidade. Não temos nenhum ritual estranho, a não ser surfar. Surfar é um ritual estranho, suponho”, ri-se. “Somos uma igreja normal, moderna, só que temos uma forma de culto mais livre e feliz.”

Seguiram as regras da praxe. Apresentaram-se a membros da Aliança Evangélica, que congrega quase todas as igrejas evangélicas em Portugal. E iniciaram o processo legal para serem reconhecidos como igreja, assegura Samuel Anjos. “Temos o cuidado de ser transparentes com outros pastores. Se aparece uma pessoa que frequenta outra igreja, conversamos com ela, conversamos com o pastor.”

Já aconteceu, por exemplo, com Miguel Barros. Antes, frequentava o Centro Evangélico O Caminho, em Ermesinde. Agora está ali, domingo após domingo, com a irmã gémea, Ana, e os pais. “São todas igrejas”, diz o rapaz, de 16 anos. “Esta é mais jovem, comunica melhor com jovens.”

Nunca pensaram que a Igreja do Surf crescesse tão depressa. Em Abril de 2015, era seis adultos e quatro crianças. As três famílias fundadoras esperavam juntar mais 15 a 20 pessoas em cinco anos. Já ultrapassaram essa meta. “Estou muito agradecido”, comenta Troy. Já falam em arrendar o espaço contíguo, em “ter mais espaço para continuar a crescer” ali, em Matosinhos. E em criar “pequenas comunidades como esta, ligadas ao skate, à dança, ao que for”. “Podemos ter pequenas comunidades que se ligam. Não sei. Igreja do Surf é um conceito fácil. Pode ser Igreja da Dança, Igreja da Arte, Igreja do Café. Uma Igreja do Café seria muito popular em Portugal.”

Já por três vezes a Igreja do Surf celebrou o baptismo. Da primeira vez, uma estrangeira. Da segunda, três portugueses. Da terceira, três portugueses e três estrangeiros.

Juntaram-se às 10h de 27 de Julho na praia de Matosinhos. Formaram um círculo. Cada um revelou por que queria ser baptizado. Vestiram fatos de surf, pegaram nas pranchas e entraram na água. Sem perder o pé, formaram um novo círculo. Oraram. Cada um foi então mergulhado nas águas salgadas e frias.

A mãe de Sara Alegria viajou de Torres Novas a Matosinhos para assistir ao baptismo da filha mais nova. Fora baptizada pela Igreja Católica no dia em que completara um ano, já lá iam, precisamente, 19 anos. “Agora, não é porque os meus pais querem, é porque eu quero”, anunciou a rapariga.

“Sou católica praticante”, explicou a mãe, Fortunata. “Baptizei a Sara e os irmãos. Casei-me na Igreja. Fui catequista. Pertenci ao grupo de jovens. A Sara veio estudar [Cenografia, Figurinos e Adereços na Academia Contemporânea do Espectáculo, no Porto] e conheceu a Ana. A Ana apresentou-lhe este grupo. Ela sente-se bem. Desde que ela esteja feliz, eu estou bem. Não me fez confusão. O Deus dela é o mesmo que o meu. Desde que não se pratique o mal, não há problema.”

Já por três vezes a Igreja do Surf celebrou o baptismo nas águas salgadas e frias de Matosinhos Nélson Garrido
Todo o culto deste movimento evangélico é feito em português e em inglês Nélson Garrido
A casa dos Pitney fica junto ao Bairro da Biquinha, a uns minutos da praia Nélson Garrido
Não é fácil conciliar a vida familiar quando se é pastor e a casa é o local de culto, admitem Nélson Garrido
Troy sabe que “Portugal é um país religioso”, mas acredita que “para grande parte dos jovens a religião é irrelevante” Nélson Garrido
Em Matosinhos, a Igreja do Surf proporciona uma experiência de surf a quem quiser Nélson Garrido
Fotogaleria
Já por três vezes a Igreja do Surf celebrou o baptismo nas águas salgadas e frias de Matosinhos Nélson Garrido

A vida num rodopio

Por aqueles dias, a casa dos Pitney era um rodopio. A família estivera na conferência anual da Operation Mobilisation, que desta vez foi em Barcelona. Um grupo escolhera Portugal para uma missão de curta duração. Na última quinzena de Julho, dormiu na Igreja Baptista, passou as manhãs com crianças do Bairro da Biquinha, a ensiná-las a surfar, a oferecer-lhes uma experiência diferente, uma memória positiva, e as tardes a conhecer pessoas, a forjar amizades ali, nas pistas de skate e na praia.

Não é fácil conciliar a vida familiar quando se é pastor e a casa é o local de culto. “Falo muito sobre isso com a minha mulher”, admite Troy. “Acreditamos em ter privacidade familiar e em ter a casa aberta. Chegámos à equação perfeita? Não. Se uma pessoa bate à porta e diz que tem um assunto para discutir, para mim é muito difícil dizer-lhe que não. Se tenho oportunidade de servir alguém, quero fazê-lo. Mas há muitas oportunidades e temos de procurar um equilíbrio na vida.”

“As pessoas são mais importantes do que o meu tempo, o meu espaço”, comenta, por sua vez, Michelle. “Acredito nisso, embora não esteja sempre feliz com isso. Por natureza, sou mais introvertida, o meu marido é mais extrovertido. Às vezes, há tensão.” Há, admite ele. “Se o meu casamento estivesse em risco de se desmoronar, se os meus filhos não me respeitassem, eu deixaria de ser pastor para consertar estas relações. O meu equilíbrio começa com o amor à minha família.”

Às vezes, tiram tempo só para eles. Agora mesmo têm de fazê-lo. “As crianças estão a precisar”, reconhece Troy. “Nós também estamos.” De 30 de Setembro a 9 de Outubro, haverá reboliço de novo. Um grupo virá conhecer a Igreja do Surf. Findo o fim-de-semana, rumarão todos para Sul, para uma semana de surf e sessões diárias de leitura e conversa sobre a Bíblia e a vida.

“Eu adoraria ficar aqui para sempre”, afiança Troy. De dois em dois anos, tem de renovar a autorização de residência, de fazer prova de que a Operation Mobilisation lhe envia um salário para prosseguir a sua missão. “Gostaria de ficar pelo menos enquanto os meus filhos estiverem na escola. Muitos missionários andam de um lado para o outro, dizem que Deus está a chamar, as crianças sofrem. Não quero isso.”

Sugerir correcção
Comentar