O silêncio fashion

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Sessenta minutos sem dizer uma única palavra. Servem a entrada, o primeiro prato, o segundo, no fim a sobremesa. Pagamos 30 dólares e saímos. Os empregados de mesa não abrem a boca, nós também não, a não ser para comer. Estamos ali sentados, durante uma hora, em silêncio absoluto. À nossa volta, nas mesas do restaurante, a mesma coisa. Ninguém fala.

Mais do que uma opção de vida, é uma performance, não é real. Mesmo no ioga amador que fazemos no Ocidente, conversar incomoda. Mas 60 minutos a comer com alguém sentado à nossa frente é outro nível de exigência. É o que na gramática se chama “superlativo absoluto sintético”. É pedir de mais. A história da comida é a história de como os povos inventaram uma forma de estar juntos a conversar.

A ideia de Eat, um restaurante que abriu no Verão passado em Brooklyn, EUA, é contrariar a história. Os pais da ideia querem que os clientes se concentrem no sabor da comida e sintam “as propriedades viscerais do acto de comer”. A comida, no caso, parece não ser nada de especial, a acreditar nas várias críticas publicadas. A ideia remete para o silêncio dos mosteiros. Não há conversa, não há telemóveis, não há máquinas. As pessoas ficam sentadas a ouvir o seu próprio mastigar e o mastigar dos outros.

Vamos a Fernando Pessoa e ele diz-nos que “existe no silêncio uma tão profunda sabedoria que às vezes ele se transforma na mais perfeita resposta”. Vamos a Edgar Allan Poe e ele fala do génio que prefere o silêncio “a dizer algo que não é tudo o que tem de ser dito”. A dizer incompleto ou imperfeito, o génio prefere ficar calado. Vamos a Faulkner e ele fala da “estupidez das palavras”. Leonardo da Vinci dizia que nada reforça mais a autoridade do que o silêncio. Martin Luther King disse aquilo que ainda hoje sabemos ser verdade: dói mais o silêncio dos bons do que o ruído dos maus. Há silêncios que dizem tudo. Esta semana perguntámos a Santana Lopes o que ele acha do regresso de Miguel Relvas à vida política activa e ele ficou em silêncio. Se foi um erro político do primeiro-ministro, silêncio. Que preço o partido vai pagar, silêncio. O silêncio tem som e tem força. Se dizemos tudo, não sobra mistério, não sobra nada, dizia Voltaire. Há muitos anos conheci uma rapariga que não parava de falar. Fugíamos dela. Com pena, porque ela dizia coisas interessantes. Mas quando o jantar acabava e nos despedíamos, sobravam duas coisas: exaustão e vazio. Era uma maratona de palavras. John Cage demonstrou, com a sua peça 4’33’’, que o silêncio absoluto não existe. Mas esta procura de um silêncio chique, de um silêncio fashion, de um silêncio para satisfazer os ávidos de experiências novas das nossas cidades consumistas é mais artificial do que um restaurante barulhento.

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Placa no Teatro Nacional D.Maria II João Matos

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