O retrocesso da gestão dos recursos hídricos portugueses

O país tem recentemente vivido num grande alheamento, parecendo estar-se a recuar 30 anos.Isso é surpreendente, porquanto as leis da Água e da Titularidade dos Recursos Hídricos de 2005 tinham criado um sistema de gestão moderno e eficaz.

O debate que tem vindo a público na comunicação social sobre a descentralização e a transferência de competências para as autarquias locais e CCDR [Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional], veio chamar a atenção para uma surpreendente quase total omissão de referência aos recursos hídricos portugueses, apesar da  enorme relevância destes para o desenvolvimento do país.

A importância dos recursos hídricos é ímpar dados o seu caráter transversal relativamente a todos os setores económicos e a sua relevância para a qualidade de vida dos cidadãos, factos cada vez mais reconhecidos a nível internacional onde se assiste a um multiplicar de iniciativas que valorizam a gestão da água como recurso primordial. O tema da “Segurança Hídrica” está na ordem do dia e a sua importância é realçada pelas preocupações relativas às alterações climáticas. Neste contexto, assume particular destaque o chamado nexus “água-energia-alimentação” e é dada atenção crescente aos fenómenos extremos, como as cheias e secas.

E em Portugal o que se passa? O país tem recentemente vivido num grande alheamento, parecendo estar-se a recuar 30 anos na forma como as questões dos recursos hídricos são abordadas. Isso é surpreendente, porquanto as Leis da Água e da Titularidade dos Recursos Hídricos de 2005, aprovadas na Assembleia da República por uma muito larga maioria, em conjunto com vários Decretos-Lei que as regulamentam, publicados até 2009, tinham criado um sistema de gestão moderno e eficaz. Esse sistema era composto por uma Autoridade Nacional da Água (INAG), e por cinco Administrações de Região Hídrográfica (ARHs) dotadas de autonomia administrativa e financeira. Estava previsto também um papel destacado para as Associações de Utilizadores (incluindo as Associações de Regantes), num quadro de descentralização contratualizada de competências, e a formulação de soluções ajustadas aos Empreendimentos de Fins Múltiplos. A Taxa de Recursos Hídricos foi racionalizada e colocada integralmente ao serviço do setor no recentemente extinto Fundo de Proteção dos Recursos Hídricos, dando-lhe capacidade financeira, permitindo a sua sustentabilidade, e assegurando assim a satisfação das exigências da Diretiva-Quadro da Água. O regime de acesso ao domínio público hídrico foi completamente revisto e desburocratizado com a criação ou consolidação das figuras da concessão, da licença e da autorização por mera comunicação do uso.

Todas estas reformas foram o corolário da atenção dada em Portugal desde a década de 70 do século passado aos problemas dos recursos hídricos e da sua gestão. No entanto, de forma algo surpreendente, desde 2011 foi assumida uma perspetiva retrógrada de subalternização desta temática, claramente em contraciclo com as tendências internacionais. A referida legislação foi truncada e revista de forma fragmentada e questionável, as cinco ARHs e o INAG foram extintos e, de forma menorizadora, integrados na Agência Portuguesa do Ambiente. Entretanto a Taxa de Recursos Hídricos perdeu a consignação à temática da água e, portanto, a sua natureza sinalagmática, própria de qualquer taxa.

As estruturas criadas pela Lei da Água entre 2005 e 2009 funcionaram em pleno, apenas durante cerca de dois anos. Não obstante, nesse curto período atuaram de forma eficiente e granjearam o respeito e a confiança dos stakeholders, nomeadamente Câmaras Municipais e Associações de Regantes. As razões falsamente evocadas para a sua extinção e subalternização foram de índole financeira, quando, afinal, elas tinham sido desenhadas para ser largamente autossuficientes.

Em suma, foi dado um gigantesco passo atrás com o desmantelamento e descaracterização do sistema institucional, o que, entre outros aspetos negativos, tem levado a uma destruição de capacidade de pensamento e ação, a uma generalizada desmotivação dos quadros técnicos do Estado com formação específica nestas áreas e a uma saída de muitos desses quadros. Este retrocesso coloca-nos também numa posição de menoridade face a Espanha onde a gestão por bacias é feita pelas Confederações Hidrográficas que, no dia a dia, deixaram de ter interlocutor equivalente do lado português. Esta situação é particularmente grave, tendo em conta que 50% dos recursos hídricos superficiais em Portugal são afluentes do país vizinho e que 2/3 do país estão inseridos em bacias transfronteiriças.

É consensual a nível internacional que a água deve ser gerida com base nas bacias hidrográficas sempre que estas tenham expressão territorial significativa. Por isso, a Diretiva-Quadro europeia aponta muito claramente nesse sentido, embora não o imponha taxativamente porque em alguns países, ao contrário do que acontece na Península Ibérica, a fisiografia dominante pode conduzir a outras soluções. Existe sempre, porém, a preocupação de fazer prevalecer uma gestão integrada por bacias hidrográficas, enquanto quadro natural para a gestão dos recursos hídricos.

Qualquer ideia de que essa gestão contraria um processo de regionalização não faz qualquer sentido e é desmentida de forma eloquente por países como, por exemplo, a Espanha ou o Brasil em que, apesar do grande peso político das Autonomias ou dos Estados, prevalece claramente o primado da bacia hidrográfica. A questão não consiste, de forma alguma, em retirar essa competência às regiões, mas antes em encontrar a forma como os poderes regionais de natureza político-administrativa participam na gestão dos recursos hídricos.

Por isso, qualquer hipótese de transferir as ARHs para as CCDRs é contraproducente e será sempre fonte de problemas e de aumento potencial de conflitualidade. Desde logo, as áreas das regiões-plano não coincidem com as áreas das bacias hidrográficas, sendo Lisboa e Vale do Tejo um caso particularmente expressivo dessa dissemelhança. Que as CCDRs e os municípios tenham uma importante palavra a dizer, é óbvio e indispensável. Que a gestão das bacias seja repartida por várias CCDRs, quebrando a lógica da unidade de gestão, é um enorme passo atrás que a ninguém traz benefícios, nem mesmo aos municípios ou às CCDRs.

Assim, é necessário e urgente assegurar o restabelecimento de uma entidade a nível nacional, que desempenhe as funções de Autoridade Nacional da Água e que trate de forma especializada das diversas e complexas temáticas da gestão dos recursos hídricos. Igualmente necessário e urgente é restituir às cinco ARHs o estatuto de dignidade que lhes conferia a Lei da Água de 2005, por forma a que possa ser assegurada uma estreita articulação com as autarquias e outras entidades de âmbito regional, contando também com a participação ativa dos stakeholders. Só assim se poderá garantir a plenitude dos benefícios que o património hídrico nacional pode e deve proporcionar ao nosso país e aos seus cidadãos.

 

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