O que é o amor?

É provavelmente a palavra mais difícil que existe porque é aquela que toda a gente sabe o que quer dizer, mas todos temos dificuldade em explicar. A investigadora Maria João Mayer Branco tentou fazê-lo numa conferência para crianças.

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Mariana Soares

Este texto corresponde a um conjunto de anotações escritas com vista a preparar uma conversa sobre “o que é o amor?” com crianças com idades entre os 7 e os 12 anos; essa conversa teve lugar no Teatro São Luiz, no passado dia 29 de Janeiro, onde integrou uma série de “Pequenas Conferências” organizadas no âmbito da iniciativa promovida por Anabela Mota Ribeiro e André E. Teodósio designada Estar em casa; permito-me manter o tom coloquial originário destas notas, esperando, ao fazê-lo, fazer ecoar a tentativa ou a experiência a que, na verdade, correspondem.

O título desta pequena conferência é uma pergunta, chama-se O que é o amor? e eu queria começar por vos dizer que não sou capaz de responder. Estou mesmo convencida de que ninguém sabe muito bem o que é o amor, de que ninguém sabe responder a esta pergunta, embora muitas pessoas que sabem muito, e muito mais do que eu, tenham dito coisas muito importantes e inteligentes, e escrito já muitos livros sobre o amor. Apesar disso, a primeira coisa que vos queria dizer é que nós não sabemos o que é o amor, embora todos os dias aconteça alguém dizer que ama outra pessoa ou fale do amor que sente por outra pessoa (é talvez a coisa melhor que existe, falar sobre o amor que sentimos ou falar da pessoa por quem sentimos amor, mesmo que isso seja tão difícil e que a maior parte das vezes não consigamos dizer bem aquilo que queremos dizer quando amamos ou quando estamos apaixonados).

Ora, isto é muito estranho e misterioso, porque a verdade é que todos sabemos o que esta palavra quer dizer, todos gostamos de alguém, mesmo que raramente usemos a palavra ‘amor’ ou digamos ‘amo-te’ (são palavras difíceis de dizer, sentimos vergonha, preferimos às vezes até não dizer, fingir que não gostamos nada dele ou dela porque dizer ‘amor’ soa, assim, ridículo, e preferimos dizer ‘gosto muito dele ou dela’). O mistério é este, então: sabemos todos o que é o amor porque todos amamos alguém, mas é muito difícil dizer ou explicar o que significa amar, é muito difícil falar sobre isso e acertar. Podemos dizer, por exemplo: ‘eu amo-te porque quando te vejo fico muito contente’ ou ‘eu amo-te porque tenho muitas saudades tuas’, mas sentimos que dizer isso não chega, que é muito mais que isso, que não cabe em nenhuma palavra.

A palavra ‘amor’ é provavelmente a palavra mais difícil que existe porque é aquela que toda a gente sabe o que quer dizer, mas sobre a qual é difícil dizer o que é, mais difícil até do que palavras como ‘economia’, ‘o público e o privado’, a ‘Europa’. Eu não vos posso ensinar nada sobre o amor, porque o amor não se ensina, no sentido de se poder estudar, ou ouvir alguém dizer umas coisas, ou ler um livro sobre o assunto e ficar-se informado. A única maneira de ficar a saber qualquer coisa sobre o amor é amar.

Mas quando digo que é muito difícil saber o que é o amor e falar dele não quero dizer com isso que nós não podemos falar do amor. Muito pelo contrário, o amor é a coisa mais difícil, mas é também a coisa mais importante de todas, e por isso o amor tem de ser dito, temos de tentar falar dele, e a verdade é que ele só acontece quando é dito. Amar é sentir amor, mas é sobretudo dizer a alguém ‘eu amo-te’, ter coragem para não disfarçar, para não fingir que não se gosta. E agora vocês pensam assim: olha, eu nunca disse isso a ninguém, se calhar nunca amei ninguém... Mas não é verdade. Talvez nunca o tenham dito assim, mas certamente amam os vossos pais, os avós ou até meninos e meninas da vossa idade, e de certeza que já mostraram a quem amam que o amam. O que se passa é que, quando dizemos ‘eu amo-te’, sabemos que dizemos uma coisa diferente de ‘gosto muito de ti’ ou ‘estou contente por estar contigo’. Sabemos que é muito diferente, sabemos muito bem do que se trata, mas temos dificuldade em explicar o que é que ‘eu amo-te’ quer dizer.

Quando nós dizemos ‘amo-te’, estamos a dizer qualquer coisa que sentimos que é muito nossa, que diz respeito a outra pessoa, mas que é só nossa, inconfundível, que é invisível e secreta, profunda, que está muito cá dentro (também por isso, o lugar que se deu ao amor no nosso corpo é o coração, que é um dos órgãos mais importantes para a nossa vida e que tem a forma de um cofre fechado, de uma caixa que guarda um segredo). Nós sentimos que nosso amor é só nosso, que os outros não o podem compreender ou partilhar, e é também por isso que se sofre muito quando se ama. Amar custa muito, traz muitas alegrias e também muitos desgostos, mesmo quando o amor é correspondido, quando o outro também gosta de nós. É mesmo muito estranho porque, quando é correspondido e duas pessoas se amam, o amor que as aproxima também faz com que se sintam muito sozinhas, totalmente sozinhas ao lado da pessoa de quem se sentem mais próximas. Não é misterioso, isto? Estar com a pessoa de quem mais se gosta e sentir uma grande solidão, é mesmo muito esquisito... E foi também por isso que muitos poetas e filósofos, que são as pessoas que mais pensaram sobre o amor e que mais tentaram dizer o que ele é, chamaram ao amor uma loucura. É uma loucura sofrer muito por gostar muito, é um disparate estar ao pé de quem se ama e sentirmo-nos sozinhos, não faz mesmo sentido nenhum... E, ao mesmo tempo, é a melhor coisa que nos pode acontecer, quando amamos alguém sentimo-nos capazes de muitas coisas, descobrimos coisas que não sabíamos, queremos descobrir mais, tudo vale a pena...

Mas é muito estranho. Dizia eu que quando dizemos ‘eu amo-te’ sentimos que estamos a dizer uma coisa que é só nossa, quer dizer, uma coisa que é única, que não se pode comparar a mais nada. Não é a mesma coisa dizer ‘eu amo-te’ e dizer ‘gosto muito de ti’ ou ‘gosto um bocadinho de ti’ ou ‘gosto mais de ti do que do António’. Só dizemos ‘eu amo-te’ em relação a outra pessoa e não em relação a coisas (às vezes dizemos, mas não devemos dizer, por exemplo, ‘eu amo esta música’ ou ‘adoro pastéis de nata’). Não devemos dizer que amamos objectos, brinquedos, livros, comidas, devemos dizer, por exemplo, ‘gosto muito deste casaco’ ou ‘gosto mais de maçãs do que de peras’. É a mesma coisa quando dizemos a alguém ‘gosto muito de ti’: queremos dizer que gostamos de estar com ele ou com ela, que gostamos de passar tempo juntos ou fazer coisas juntos, que isso nos agrada, que nos agrada mais isso do que fazer outra coisa com outra pessoa, e é como gostar mais de jogar à bola do que de ver um filme, por exemplo. Quando dizemos ‘gosto muito disto’ ou ‘gosto muito de ti’ estamos, portanto, a comparar com outras coisas que nós gostamos e, portanto, estamos a falar de nós.

Mas quando dizemos ‘eu amo-te’ estamos a dizer qualquer coisa que não tem comparação possível, que não é possível medir (não podemos dizer, por exemplo, ‘eu amo mais o meu pai do que a minha avó’ ou ‘eu amo menos o Pedro do que o Miguel’, muito menos responder a uma pergunta que às vezes nos fazem, por tolice, ‘gostas mais da mãe ou do pai?’). Quando dizemos a alguém ‘eu amo-te’, estamos a dizer o máximo que é possível dizer, as palavras mais fortes de todas, a coisa mais forte que se pode dizer a alguém. É precisa muita coragem para dizer isto precisamente porque não se diz a toda a hora, nem a qualquer pessoa, ou a respeito de tudo e de nada. Sabemos que quando dizemos ‘amo-te’ ou quando alguém nos diz ‘amo-te’ se trata de uma coisa muito séria e muito, muito importante, diferente de todas as outras coisas. E nós sentimos que essa coisa é nossa, como eu já disse, mas que ao mesmo tempo não é, porque depende absolutamente da pessoa que amamos. E isto significa outra coisa mesmo estranha e que é que, ao contrário de quando dizemos ‘adoro chocolate’ ou ‘gosto muito da Catarina’, quando dizemos ‘eu amo-te’ não estamos, na verdade, só a falar de nós. Estamos a dizer uma coisa que sentimos que só nós sabemos o que é e que mais ninguém pode compreender, mas ao mesmo tempo sabemos que aquilo que sentimos depende do outro, do facto de o outro existir. É como se a nossa vida estivesse no corpo de outra pessoa, nas mãos dela ou dele, nos cabelos, na voz dele ou dela, como se tudo dependesse dessa pessoa estar perto ou longe de nós, gostar ou não de nós, e ficamos muito felizes quando ela aparece e muito tristes quando ela não vem. Somos capazes de fazer coisas muito estranhas, e até muito estúpidas, para estar com a pessoa por quem sentimos amor, para mostrar que gostamos dela, para fazer com que ela goste de nós, e é também por isso que é difícil amar e que podemos sentir vergonha de dizer que amamos alguém.

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Outra coisa muito estranha e misteriosa, muito difícil de compreender no amor é esta: nós não escolhemos a pessoa que amamos, quer dizer, quando estamos apaixonados, nós não sabemos porque é que gostamos tanto daquela pessoa e não de outra. É também por isso que quando dizemos ‘amo-te’ não estamos exactamente a falar de nós, porque não fomos bem nós que escolhemos. Eu posso gostar mais do Pedro ou do Miguel e decidir que prefiro ir à praia com um ou com o outro, mas se eu amo o Pedro ou o Miguel, eu não tenho escolha, não posso dizer assim: ‘pronto, agora já não amo mais o Pedro’ e deixar simplesmente de sentir amor por ele. O amor pode desaparecer, podemos deixar de amar uma pessoa, mas não desta maneira, não porque decidimos deixar de a amar. E, do mesmo modo, também não podemos pensar assim: ‘a Mariana é muito gira, amanhã vou amá-la’. Pode até acontecer que nos apaixonemos por alguém que é muito feio, ou faz coisas com que não concordamos, ou pensa de uma maneira muito diferente da nossa, alguém que nos irrita, até, ou que só nos dá desgostos. E isto também pode ser muito difícil porque pode acontecer que queremos deixar de amar uma pessoa e não conseguimos. Ou, então, o contrário: pode acontecer que queiramos amar uma pessoa, por exemplo, um rapaz muito giro que nos diz que gosta muito de nós, mas continuarmos a amar o gordinho caixa de óculos que só gosta de jogar jogos de computador... Se o Manel ama a Joana, não é por a Joana ser magra ou morena e ter muitas roupas bonitas; se o Manel ama a Joana é porque, quando a vê ou pensa nela, ela é diferente de todas as outras meninas, ela é única e ele iria reconhecê-la mesmo que ela engordasse cem quilos e pintasse o cabelo de louro. Ele iria reconhecê-la quer dizer que responderia da mesma maneira à sua presença e existência, ou, melhor ainda, quer dizer que, vendo-a, sentiria da mesma forma que estava a ser chamado, que só ela podia chamar por ele daquela maneira tão única, chamá-lo pelo seu nome, como diz uma canção. Porque é isso que acontece: o amor chama-nos pelo nosso nome, qualquer coisa naquela pessoa se dirige a nós, qualquer coisa fora de nós nos encontra, como se fosse magia.

Quando descobrimos que a pessoa que amamos não nos ama, sofremos muito e pode acontecer outra coisa muito estranha que é deixarmos de gostar de nós, sentirmos que não valemos o amor do outro porque só esse amor, só ser amado por essa pessoa, nos pode fazer sentir bem connosco, quer dizer, nos pode ajudar a descobrir quem é que nós somos, afinal. Isto é muito perigoso, claro, porque é muito importante que gostemos de nós. Gostarmos de nós é sentirmos que temos coisas para dar aos outros, que também contamos, que queremos saber quem somos e como somos, e que contamos com os outros para isso. Por isso, para receber o amor de alguém, é preciso gostar de si, sentir que alguma coisa em nós merece esse amor, mesmo que não saibamos exactamente o que essa coisa é. Gostar de nós é, num certo sentido, como amar outra pessoa, ou seja, é não saber bem porquê e, apesar disso, ter a certeza.

Não se ama uma pessoa pelo que ela tem, mas pelo que ela é, pelo modo como ela existe e nos aparece. E quando se ama, não se sabe porquê, nem quando é que isso de amar aquela pessoa começou, nem se vai algum dia acabar. Embora, quando amamos alguém, sintamos e digamos que vamos amar para sempre, que esse amor é eterno, que nunca irá acabar. Só que dizer isto é um grande risco porque nós não somos os donos do nosso amor, nunca podemos ter a certeza de que o nosso amor vai durar para sempre. Mas parece-nos sempre que sim. Juramos que sim, prometemos que vai ser assim para sempre, e digam lá se isto não é um bocadinho disparatado, prometer aquilo que não se sabe que se vai poder dar... É que, como eu disse no início da conversa, nós não sabemos, não podemos saber tudo acerca do amor, sobretudo acerca daquele a que chamamos o ‘nosso’ amor. Não temos um saber acerca disso, não controlamos bem isso, apesar de sabermos e sentirmos que queremos dar, mostrá-lo ao outro. Amar é, então, em certa medida, dar o que não se tem, um dar que é um pedir e um receber. Quando alguém diz ‘eu amo-te’ está a dizer ‘dou-te o meu amor’ e, ao mesmo tempo a perguntar ‘dás-me o teu?’. E quando digo a alguém ‘eu amo-te’, digo-lhe que me deu ou me mostrou uma coisa em mim que eu não sabia.

Amar é dar aquilo que se está a pedir, imaginem lá, é querer o que se está a dar, é dar o que se quer receber. Por isso é que devemos dizer que amamos o outro, porque ao dizer estamos a pedir o seu amor e, se ele vem, nós vamos poder continuar a dar, vamos poder continuar a dizer ‘amo-te’. Amar é pedir amor, e é um dar e pedir sem fim. Esta é outra coisa estranhíssima: o amor nunca está satisfeito, nunca enche a medida, nunca farta. É diferente da fome, por exemplo: se temos fome, comemos e deixamos de sentir fome, assunto arrumado. Mas quando amamos, parece que nunca chega, ou que há sempre mais para dar, mais para sentir. Se estamos juntos a tarde toda, queremos estar juntos também à noite; quanto mais amamos, mais queremos amar. É claro que também se pode amar alguém que não nos ama, e quando isso acontece sofre-se muito porque não se pode pedir aquilo que se quer dar e porque o outro não está disponível para receber, para responder ao nosso amor. Quando dizemos a alguém ‘eu amo-te’ temos de estar preparados para ouvir ‘mas eu não te amo’ ou ‘eu amo outra pessoa’, é um risco que corremos e que temos de ter a coragem de correr. Pode-se continuar a amar uma pessoa que não nos ama, isso é possível, sim, mas muito, muito difícil, e significa apenas ‘eu quero que tu existas, que tu vivas, mesmo que seja longe de mim’.

Investigadora no Instituto de Filosofia da Nova, Universidade Nova de Lisboa

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