O homem que não queria ser nêspera

Em Portugal, só precisamos de uma desgraça para descobrir uma dúzia delas, encobertas. Tão encobertas como a verdade.

Ele há cada coisa nesta vida… Ainda na passada semana se ressuscitou aqui o podre salva-vidas satirizado por Eça e, nem de propósito, cai-nos em cima esta semana um roubo, e dos grandes. Não foi um roubo qualquer, é bom que se diga. Foi um assalto ao paiol de Tancos, levando dali uma quantidade razoável de explosivos, lança-granadas e granadas foguete antitanque. Claro que, depois do roubo, vieram as revelações do costume: videovigilância inoperacional, rondas de vigilância desleixadas, vedação danificada. E vieram também as justificações do costume: a empresa que fez obras em Tancos, em lugar de se mostrar preocupada, veio dizer que fez ali um “trabalho limpinho”. “Espero que não nos façam perder muito tempo com isto”, disse o seu sócio-gerente, sem o mínimo peso de culpas. O governo, com um primeiro-ministro em férias e a gerir a felicidade reinante, também se auto-contentou: afinal não foram terroristas os ladrões das armas, foram só operacionais do crime organizado. Excelente. Assim, já não haverá explosões na estação do Rossio em hora de ponta, serão só uns multibancos e umas carrinhas de valores a irem pelos ares, do mal o menos; isto se o uso for interno, porque se o material for para o mercado negro talvez uns terroristas o comprem e aí… Bom, está sol, é melhor não pensar muito nisso.

Na estátua de Eça de Queiroz que está resguardada no Museu de Lisboa (e na réplica em bronze que ainda resiste no Largo do Barão de Quintela, ao Chiado) lê-se a seguinte frase, tirada de A Relíquia: “Sobre a nudez forte da verdade, o manto diaphano da phantasia”. Muito apropriado. Como apropriado é o impagável “Rifão Quotidiano” do não menos impagável Mário-Henrique Leiria, cuja obra completa agora se reedita. “Uma nêspera/ estava na cama/ deitada/ muito calada/ a ver/ o que acontecia// chegou a Velha/ e disse/ olha uma nêspera/ e zás comeu-a// é o que acontece/ às nêsperas/ que ficam deitadas/ caladas/ a esperar/ o que acontece.” Pois é. Seja nos fogos ou noutras desgraças quotidianas, tendemos a ser mais nêsperas do que Velhas. Heróis do mar, nobre povo, tudo isso se obscurece no manto diáfano. O nosso pudor impede-nos de ver a verdade nua, e por isso atabafamo-la de fantasia. E quando um ombro, um joelho, uma nesga da omoplata se lhe revela, corremos a envolvê-la no manto para que a não vejam – ou não se constipe.

De quem é a culpa, aqui como nos fogos? É da força das chamas! É da habilidade dos ladrões! Falhas na segurança? Nunca. O SIRESP funcionou, as obras em Tancos funcionaram. Foi tudo limpinho? Foi. Limpíssimo, mérito dos assaltantes. Deviam, sendo assim, condecorá-los. Porque a nação valente e imortal foi abalroada nos seus paióis de forma vergonhosa e, assobiando ao de leve, procura justificações para o injustificável. Pobre nêspera! E abençoado manto, que a cobre!

Em Portugal, só precisamos de uma desgraça para descobrir uma dúzia delas, encobertas. Daí o manto, daí a nêspera. O manto esconde, a nêspera doura ao sol. Se um dia assaltarem qualquer fortaleza lusitana inexpugnável (haverá alguma?) vão descobrir que alguém não pagou a conta da electricidade, que os alarmes estavam para reparar e que a maioria das portas estava no trinco. E vão nomear-se comissões de inquérito. E vão brandir-se dedos acusadores sem ninguém a quem acusar. A culpa é de todos, a culpa não é de ninguém – como diria José Mário Branco, que em Maio passado completou 75 sábios anos. Sendo nêsperas, rezemos para que Velha não venha.

Pois alguém que não queria ser nêspera, e a isso resistiu com quanta força tinha, morreu-nos esta semana. Henrique Medina Carreira, ex-governante, comentador ácido e lúcido, crítico da classe política com a qual apesar disso se envolveu, não se cansava de pôr o dedo nas feridas nacionais. Sempre com desassombro e acutilância, era visto como pessimista profissional pelos cultores da felicidade-nêspera em que nos atordoamos. Sentiremos a sua falta. Participei, com gosto e honra, num dos seus programas televisivos Olhos nos Olhos, na TVI24, dedicado ao chamado Acordo Ortográfico, coisa também de nêsperas adormecidas. A este último voltaremos, deixando aqui uma sugestão: vejam no Youtube o vídeo de Ricardo Araújo Pereira com Gregorio Duvivier, gravado em São Paulo; e o da Sardinha Contra o Acordo Ortográfico. São, ambos, bem frescos.

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