Como é que os livros da escola devem falar de Mário Soares?

Foi o primeiro primeiro-ministro resultante de eleições, em 1976, teve um papel fundamental na descolonização e na entrada de Portugal na CEE. Eis Mário Soares (pouco visto) através dos manuais escolares.

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Hoje, Mário Soares ocupa nos livros de História “10% do programa, se tanto” Enric Vives-Rubio

A um aluno que tenha dificuldade em situar o papel de Mário Soares no contexto da recente história de Portugal poder-se-á recomendar a leitura de um manual escolar de História. Mas a verdade é que estes pouco ou nada dizem sobre a figura, limitam-se a nomeá-lo no papel que teve nos diferentes contextos sociais e políticos – da oposição à ditadura à descolonização e à integração de Portugal na Comunidade Económica Europeia (CEE), passando pelo facto de ter sido o primeiro primeiro-ministro eleito, em 1976.

“Os programas curriculares não dão espaço suficiente para tratar esta figura em detalhe. Fala-se muito em Salazar, mas Soares ocupará 10% do programa, se tanto. Acredito que a morte dele irá acelerar o tempo que a História considera necessário para lhe ser feita justiça. Neste momento, até devido à sua longevidade, fala-se apenas no seu papel fundamental na criação e no amadurecimento da democracia portuguesa, que é algo que nem os seus detractores contestam”, aponta Eliseu Alves, autor de manuais escolares de História da Porto Editora.

“Até agora, dar espaço a Mário Soares em termos de programa poderia não ser pacífico, dado ser uma figura tão controversa”, acrescenta o historiador. Vencido este tempo, em que “basta ir a uma rede social para perceber os extremos e a falta de equilíbrio que impedem uma visão mais factual” sobre Mário Soares, será talvez possível falar do seu papel “de forma mais objectiva, criteriosa e menos apaixonada”. Exemplo concreto? “A mim, como autor de manuais escolares, uma das questões que se levantam é a da descolonização, que tende a ser contada sem paixão: diz-se que decorreu de forma apressada e que implicou a chegada de cerca de meio milhão de retornados, normalmente recorrendo à fotografia icónica com todos aqueles haveres em frente ao Padrão dos Descobrimentos. Logicamente que esse é um dos aspectos mais controversos da personalidade de Soares e nem o facto de a reintegração dos retornados ter sido feita de forma quase exemplar impede que a descolonização seja ainda hoje um dos grandes trunfos dos seus detractores, que questionam a legitimidade, num período de governos provisórios, para avançar com o processo”.

A morte de Mário Soares ajudará a criar distanciamento histórico para falar disto nos manuais escolares, “bem como das questões de Macau ou até mesmo da última questão das eleições presidenciais contra o grande amigo e combatente Manuel Alegre”, defende Eliseu Alves.

“Figura muito recente”

O presidente da Associação de Professores de História, Miguel Monteiro de Barros, concorda que a sua morte vai permitir reinterpretar os acontecimentos, também porque “vão surgir muitos documentos e muitas fontes que trarão novidades”.

A questão é que “o conhecimento produzido na academia leva normalmente uma geração, cerca de 25 anos, a chegar à sociedade em geral". Por enquanto, Soares é ainda “uma figura muito recente e os autores continuarão com receio de ferir susceptibilidades, sobretudo porque continuará a haver muita gente viva com sentimentos muito exacerbados em relação ao seu papel”, justifica Miguel Monteiro de Barros.

Acorrentados pela proximidade, mas também pelos espartilhos impostos pelo programa curricular, os professores confiam que um aluno do 9º ano possa pelo menos “perceber o preço que muitos tiveram de pagar para que eles possam viver em democracia”, conforme confia Eliseu Alves. E situar a acção de Mário Soares no desenrolar dos acontecimentos que consolidaram o processo democrático, associando-o a valores como “liberdade de expressão e de pensamento e de greve”.

“No 12.º ano tratamos a questão do 25 de Abril e todo aquele período até à revisão constitucional de 1982 e à estabilização da democracia e obviamente que Mário Soares surge como uma figura incontornável, até porque foi o primeiro primeiro-ministro que decorreu de umas eleições, em 1976”, situa Helena Veríssimo, professora de História e autora de manuais escolares, para quem “Soares surge também nos manuais como figura incontornável da oposição ao Estado Novo e no papel que teve na formação do Partido Socialista e na luta contra a esquerda e o poder popular mais radical”. Resumidamente, “o seu papel surge inegavelmente associado aos três D’s: descolonização, democratização e o desenvolvimento, com a adesão à CEE”.

Mas à História A do 12.º ano chegam apenas os alunos que seguiram línguas e humanidades. “É uma minoria, à volta de 30%”, lamenta Veríssimo. E o mais grave é que a História B, que é a alternativa pensada para os alunos que seguem económico-sociais, surge como disciplina de opção e “está reduzida a um número muito pequeno de turmas, porque a maior parte destes alunos opta por Geografia e neste momento há muitas escolas que já nem sequer oferecem a opção de História”, conforme descreve Raquel Henriques, professora de História, para quem esta "devia funcionar como disciplina opcional para todos os alunos do secundário, independentemente da área que escolhem”.

“Cenário de incultura geral”

É que, no 9.º ano, os alunos são confrontados com 13 disciplinas. “É um ciclo terrível. Com tantas disciplinas as cargas horárias para cada uma delas são mínimas, o que leva a uma grande dificuldade de aprofundamento das questões, ainda mais porque os programas são muito extensos”, descreve Helena Veríssimo. Porque “em duas aulas semanais é muito difícil chegar à história contemporânea”, Veríssimo acredita que poderá haver da parte deste ministério “alguma disponibilidade para rever um programa que não é revisto desde o início da década de 90”.

Antes do 9.º ano, o programa curricular do 6.º ano também dedica alguma atenção à história contemporânea, “mas muito pela rama, com as figuras de Soares e de [dirigente comunista] Álvaro Cunhal a surgirem como resistentes ao Estado novo e, acima disso, como construtores de um Portugal democrático”.

Independentemente do nível de profundidade inerente aos diferentes anos de escolaridade, o antigo director da revista História e actual director do museu de Aljube, Luís Farinha, considera que a figura de Mário Soares, como a de outras no pós-25 de Abril, “merecia um tratamento mais cuidadoso”.  “Mas estamos a falar de manuais onde o Estado Novo é tratado em dez páginas e o 25 de Abril é tratado em sete ou oito páginas, mesmo no 12.º ano”, observa.

Para evitar que dentro de algumas décadas poucos saibam apontar o papel de Mário Soares, e de outros como ele, na história recente de Portugal, Luís Farinha recomendaria um sistema semelhante ao adoptado em Espanha. “Eles têm uma fase de politécnico pré-universitário, na maior parte das regiões espanholas, e todos têm História de Espanha nesse primeiro ano. É obrigatório. Cá, a partir do 10.º ano, quando os alunos têm 14 ou 15 anos e começam a conseguir pensar nisto de forma mais madura e consistente, quase quatro quintos deixam de ter História. E eis-nos, conclui, “neste cenário de incultura geral que extravasa a escola mas que esta deveria ter em conta”. 

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