O fogo, "um problema de ordem pública"...

O ministro da Administração Interna de então, austeritário como os demais do governo Sócrates, chamava-se António Costa. Espera-se que vá a tempo de corrigir isto tudo.

64 mortos em Pedrógão Grande, um número indeterminado de desaparecidos, a caminho dos 300 feridos. Da discussão que temos de fazer sobre o território, a "desumanização" do mundo rural (como lhe chama Jorge Paiva) e o papel das indústrias da madeira e do papel na determinação da política florestal não dependem apenas os lucros da indústria ou o que o Estado deve pagar pela discriminação positiva de territórios cada vez mais despojados de serviços e bem estar. Dependem vidas humanas. Sobre as consequências do aquecimento global podemos, como se tem feito, invocar o comportamento de Trump, mas era bem mais útil denunciar os nossos Trumps domésticos, a começar pelo lóbi das indústrias da fileira florestal.

Num mundo rural que perdeu, em poucas décadas, a grande maioria do seu peso na economia, a produção de madeira para a indústria é das raras atividades que nele são altamente lucrativas. Somos o 3º produtor europeu de pasta de papel. "A área florestal dedicada ao eucalipto tem vindo a aumentar substancialmente desde 1963, passando de apenas 3,8% da superfície florestal para 23,3% do total dessa área em 2005/2006." As "indústrias papeleiras são responsáveis pela gestão de cerca de 185 000 hectares de floresta (83% da qual é constituída por eucalipto)", espécie tão rentável quanto inflamável, "os quais abastecem cerca de 20% do volume total de madeira consumida" (estudo de E. Sarmento e V. Dores, Revista Portuguesa de Estudos Regionais, 2013). A eucaliptização é um facto, produz lucros muito acima de outras atividades económicas e tem um peso significativo nas exportações portuguesas. Que, perante a tragédia de Pedrógão Grande, se multipliquem as vozes que pretendem desviar a atenção da questão é a prova de que pode o fogo continuar a matar e a devastar todos os anos metade da superfície queimada da UE que, por este lado, não haverá tréguas: lucro é lucro. É, aliás, muito revelador ver quem, perante a exigência de assunção de responsabilidades e de reforma de fundo da floresta portuguesa, assobia para o lado e repete a velha ladainha de que o que temos "é um problema de proteção civil e de ordem pública. A monocultura do eucalipto é um falso problema" (presidente da Associação dos Proprietários Florestais, Antena 1, 22.6.2017). O argumento vem acompanhado das velhas teses conspiracionistas do presidente da Liga de Bombeiros (esse cacique dinossáurico do Pinhal Interior, Jaime Marta Soares) que, "contrariando toda a informação disponível sobre o assunto", como recorda Henrique P. Santos (PÚBLICO, 19.6.2017), continua a insistir em que "75% dos incêndios tem origem criminosa", incluindo o de Pedrógão. É exatamente a mesma atitude daqueles que desvalorizam qualquer esforço de explicação do crime ou do terrorismo: o que interessa é armar mais polícias e militares para os combater! Como se por detrás de todos os fenómenos naturais ou sociais estivesse a imprevisibilidade ou a maldade. "Quando um governante diz que o fogo é imprevisível (...) está claramente a fazer uma opção obscurantista de desprezo pelo conhecimento".

38% da superfície do nosso país é floresta. 98% dela é privada. O seu papel na vida das comunidades rurais mudou radicalmente com as migrações dos últimos 70 anos. A grande maioria dos proprietários são incapazes de gerir o que têm de floresta. Qualquer política de ordenamento e gestão do território tem de contar com esta realidade sociodemográfica e assumir o dever de discriminação positiva que implica mais recursos e mais despesa - ou, em alternativa, sofrer mais incêndios e mais mortes. Ter acabado com os Serviços Florestais em 2006, distribuir as suas funções por cinco entidades descarticuladas e com poucos recursos, "esquecendo-se da conveniente profissionalização e apetrechamento dos bombeiros", também não ajudou, como o denuncia há muitos anos Jorge Paiva. No decreto de 2006 invocavam-se "razões de racionalidade e eficiência económica [que] desaconselhariam desde logo a criação de um serviço autónomo da Administração Pública (...) vocacionado para a prevenção e a intervenção de primeira linha em incêndios florestais".

O ministro da Administração Interna de então, austeritário como os demais do governo Sócrates, chamava-se António Costa. Espera-se que vá a tempo de corrigir isto tudo.

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