O estranho caso do mensageiro que tropeçou na mensagem

Para a violação do segredo de justiça e para a descoberta e punição de quem dá a mensagem ao mensageiro não há e não servem indícios?

Há duas semanas, mais coisa menos coisa, foi notícia a acusação de alguns jornalistas portugueses por violação do segredo de justiça. Logo se abriram bocas de espanto e se franziram cenhos de indignação, por duas razões: por terem sido acusados jornalistas de tal malfeitoria e, também, por serem só aqueles. Quanto à primeira, fechem a boca e descontraiam o cenho, porque os jornalistas violam o segredo de justiça (de várias formas, entre elas reproduzindo obscenamente o que a lei lhes não permite sequer que conheçam) e a lei é clarinha sobre isso, e não é uma lei de ontem, pelo que não percebo o espanto nem a indignação. Quanto à segunda, nessa têm muita razão, pois violadores de segredo com carteira profissional são muitos mais do que os agora acusados, e fazer do segredo de justiça gato-sapato, vendendo jornais e fazendo audiências à sua custa, está muito em voga no nosso país. Só não vê quem não quer ou então quem é cego e surdo de todo.

Mas motivos para espanto e indignação havia outros, e bem mais importantes, e só a hipocrisia e o compadrio reinantes em matéria de violação do segredo de justiça (num toma- lá-dá-cá lucrativo, interesseiro e descarado - para ambas as partes do tráfico) fez com que as bocas se não abrissem e os cenhos se não franzissem com mais uma acusação que só aponta o dedo ao mensageiro, poupando carinhosamente o autor da mensagem. Em Portugal, se olharmos para os (poucos) processos por violação do segredo de justiça, chegamos à conclusão de que, quase sempre, o mensageiro tropeçou na mensagem. Ninguém lha deu, ninguém violou os seus deveres de guarda, sigilo ou reserva, ninguém abriu às escâncaras as portas do que lhe cabia calar, ninguém serviu numa bandeja, com os mais variados propósitos, pedaços da carniça do processo. Não senhor, nada disso. O jornalista ia a passar e lá estava a informaçãozinha sobre o processo, órfã e desamparada, à espera de mão amiga que a servisse ao público ávido de escândalo. E o jornalista, coitado, a contragosto, fez-lhe a vontade, que segredos órfãos e público voyeur não são para contrariar.

Ah, investigar e descobrir quem dá a mensagem é muito difícil, dizem alguns, entre eles alguns maiorais da investigação, um ou outro iluminado da virtude pública e alguns hipócritas do jornalismo. Pois será, não duvido, mas também é muito difícil investigar e descobrir outras coisas, e para elas esses mesmos maiorais, iluminados e hipócritas usam e abusam da chamada prova indirecta, aquela que, à falta (ou à dificuldade) de outra, vai lá por indícios, deduções, raciocínios, experiências e até provérbios. E com isso (e às vezes sem mais do que isso) fazem processos, acusações e até condenações. Ora, o que a minha boca aberta de espanto e o meu cenho franzido de indignação querem saber é só isto: para a violação do segredo de justiça e para a descoberta e punição de quem dá a mensagem ao mensageiro não há e não servem indícios, deduções, raciocínios e experiências, e até provérbios? E não servem porquê, se servem tanto e tão bem para outras coisas? Acho que sei as respostas, não tenho prova (daquela boa, sólida e saudável), mas raciocínios, deduções e provérbios, se quiser, arranjo já uma mão cheia deles, e dos bons. Pois é. Não é?! Só é parvo quem quer e hipócrita quem pode. E virgens ofendidas, senhores jornalistas espantados e indignados com esta acusação, haja dó por favor e um bocadinho de decoro. Não?

Advogado

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