"O domínio da vontade"

É inacreditável que oficiais insinuem que estes jovens militares possam ter morrido por ter tomado substâncias.

Dylan da Silva e Hugo Abreu. Mortos aos 20 anos. Outros cinco feridos internados. Todos selecionados para o curso de Comandos num momento em que eram já, recordemo-lo, oficiais ou sargentos do Quadro Permanente do Exército, ou praças voluntários ou contratados, isto é, todos militares no ativo, que, portanto, tinham passado por outros processos de seleção antes de serem sujeitos às já de si duras provas de classificação e seleção do curso de Comandos (http://www.exercito.pt/sites/recrutamento/Paginas/TropasEspeciaisComandosRequisitos.aspx).

Mortos e feridos em cursos dos Comandos são tudo menos novidade. Em outubro passado, por exemplo, nove militares que faziam um curso deste tipo acabaram internados no Hospital das Forças Armadas, dois deles nos cuidados intensivos. Um, deles Vítor Antas de Brito, de 19 anos, "ainda não deixou as muletas". Segundo contou então a mãe ao Correio da Manhã, “o meu filho tem um rim parado, está a fazer hemodiálise, lesões no fígado e um joelho partido. Não conta o que aconteceu, só chora” (cit. no Observador, 8.9.2016). Também então, o Exército abriu um inquérito para averiguar o que se passou, e tudo acabou nas mesmas águas de bacalhau em que acabam, por definição, os inquéritos que os militares abrem sobre si mesmos.

No discurso fanfarrão que tem sido assumido pelos militares que, nos últimos dias, têm passado por porta-vozes oficiosos da instituição nas televisões, o curso de Comandos é assim mesmo. Que haja jovens formandos feridos, internados em condições de exaustão extrema, com órgãos vitais em disfunção, que jovens considerados física e psicologicamente aptos acabem mortos ao fim de um par de dias de formação, parece, na boca deles, coisa banal, prova da "dureza física da instrução [que] atinge os limites da capacidade de resistência dos candidatos, pretendendo fazer de cada um o dono da sua vontade", como se escreve na página oficial do Regimento de Comandos. Coisas que acontecem àqueles que, como também lá se escreve, se submetem a uma prova "para apurar o domínio da vontade sobre todos os instintos".

Deve ter sido o que aconteceu em abril de 1988 a José Luís Grilo e a Fernando Teixeira Bastos. Às 5 da tarde sentiram-se mal e foram transportados para o hospital. Poucas horas depois, dois jovens perfeitamente saudáveis tinham morrido. "A explicação oficial chegou dois dias depois, (...): 'Desidratação ou insolação'." Se neste verão a explicação até poderia ser plausível, em abril parece pouco imaginativa. Que má pontaria para condições meteorológicas parece ter quem programa os cursos de comandos, não é? Claro que já em 1988 "outras fontes, nomeadamente do hospital onde os militares morreram, avançavam com outra explicação: o cansaço" causado por terem “sido forçados a ultrapassar a sua capacidade física no decorrer dos exercícios”.

Em setembro de 1990 o cenário repete-se: José Mário da Silva Nunes sentiu-se mal durante uma prova, a tal ponto que foi transportado de helicóptero para o Hospital de Santa Maria com sinais de enfarte do miocárdio. "Chegou sem vida ao hospital", contou-se na imprensa. Então, como hoje (veja-se o caso das agressões de instrutores reportadas por Dylan da Silva a amigos seus pouco antes de morrer), surgiram fontes a denunciar “a forma como foi ministrada a reanimação e os ‘murros e pontapés’ dados àqueles que tentavam abandonar a prova” (Observador, 8.9.2016). Em 1990, como agora, os porta-vozes do Exército negaram que tivesse havido qualquer agressão. "A estes militares de profissão basta-lhes dizer que se querem ir embora para regressarem ao quartel em que estavam colocados antes de se inscreverem" (PÚBLICO, 16.9.2016). Bastará? Ao Observador, "um instrutor explica por que razão levam os militares a níveis de sofrimento fora do comum: 'Para testares uma pessoa tens de quebrá-la. Queres a natureza e a essência da pessoa para que, mesmo na exaustão, consiga pensar para sobreviver e para salvar os colegas', diz um instrutor. Para isso, é preciso 'testar os seus valores até ao limite'." O que farão estes instrutores quando algum instruendo lhe diz que quer desistir?

Nem me vou meter pela discussão - de resto, completamente legítima, e necessária! - sobre a perversão ética e moral que percorre toda a prosápia, toda a arrogância, com que os responsáveis por esta força militar se vangloriam de "rituais iniciáticos e cerimoniais únicos", de "uma tradição (...) inspirada nas antigas ordens de cavalaria portuguesas", da formação desse "homem que, senhor absoluto de uma vontade, pode, em imperativos de consciência, vergar e dominar a força de um instinto". O que os Comandos dizem de si próprios nas suas páginas oficiais destila o pior militarismo. Que nos recordem que, "em Portugal, os Comandos nasceram na guerra", isto é, na Guerra Colonial, "e para fazer a guerra", pode parecer banal, mas merecia que lhes recordássemos que em Wyryamu e em centenas de outros casos foram responsáveis pelo que de mais imperdoável a tropa portuguesa fez em África. Que o seu mote seja "Quem faz do perigo o seu pão, do sofrimento seu irmão e da morte sua companheira", que se proclame que "o comando não foge ao perigo, não evita as situações que possam acarretar-lhe incómodos", não deveria permitir a quem manda pressupor ser inevitável que uma formação destas possa deixar pelo caminho mortos e feridos graves, e muito menos que se pretenda responsabilizar as próprias vítimas por se terem aventurado a fazer um curso para o qual não tinham condições físicas ou psicológicas. Mas, afinal, quem os selecionou? Não havia médicos? Não havia psicólogos? Ou nos Comandos seleciona-se a olhómetro? É inacreditável que nestes últimos dias tenha havido oficiais a insinuar que estes jovens militares no ativo possam ter morrido por ter tomado substâncias proibidas, como se, nas condições de controlo permanente a que estavam sujeitos, tal pudesse passar despercebido. Que o homem que chefiou o Exército em 2006-11, o general Pinto Ramalho, se lembre, a propósito de mortos em tempos de paz, de perguntar se “os portugueses querem ter um exército de escuteiros ou uma força armada capaz de atuar ao nível dos outros países do mundo?” (Observador, 8.9.2016) diz muito do que as chefias militares julgam ser o seu papel neste país. Que o ministro da Defesa, por fim, tenha reduzido estas mortes a "ocorrências" e que diga apenas que há que "saber o que é que correu menos bem" (declarações na AR, 15.9.2016) é digno de um prémio internacional de eufemismo prescindível.

"Há uma garantia que já dei, e que o ministro da Defesa e o Chefe de Estado Maior das Forças Armadas também já deram: é que será tudo apurado até às últimas consequências", garantiu o Presidente da República (PÚBLICO, 16.9.2016). Pago para ver!

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