O campeonato da selecção e o campeonato da equidade

As famílias podem preferir um restaurante à cantina da escola, mas não é lícito que exijam que o Estado pague as refeições dos filhos no restaurante.

Escondido no meio dos argumentos que a direita tem apresentado no debate sobre os contratos de associação emerge, com cada vez maior frequência, algo que não tem a ver com este debate específico, mas que constitui o fundo do debate ideológico sobre a questão: a ideia de que, seja como for, ainda que haja sobreposição de escolas públicas e privadas, ainda que haja escolas públicas vazias, ainda que haja financiamento estatal desperdiçado em escolas privadas, ainda que o dinheiro público seja escasso para as escolas públicas, seja qual for a qualidade do ensino nas escolas privadas e públicas, as famílias deviam poder escolher se querem pôr os seus filhos numa escola privada ou numa escola pública.

A resposta curta é que as famílias podem escolher. As escolas públicas estão abertas a todos, por determinação legal, e as escolas privadas estão aí, aos milhares, ansiosas por receber alunos, já que esse é o seu negócio. A questão, como é evidente, é que as escolas privadas são pagas e as públicas gratuitas e as famílias podem querer escolher uma escola privada e não ter dinheiro para a pagar. É injusto? Seria profundamente injusto e mesmo inaceitável, se não existisse uma rede escolar pública, universal e gratuita, disponível por lei para todas as crianças - incluindo as negras e as ciganas, as crianças com necessidades educativas especiais, com deficiências e as imigrantes. Mas, existindo essa rede, paga por todos nós, é evidente que não há qualquer justificação para que o Estado seja obrigado a pagar os caprichos de alguns cidadãos que preferem escolas fora da oferta pública. Seria também injusto e também inaceitável, se se desse o caso de a oferta pública ser de muito fraca qualidade (um ensino de segunda) e se a oferta privada fosse de excelente qualidade (um ensino de primeira), caso em que o obstáculo financeiro para frequentar a escola privada se transformaria numa condenação a uma vida de menor bem-estar e menor realização pessoal e profissional para os seus alunos, eternizando desigualdades e impedindo a ascensão social que é uma das funções da escola. Mas, de facto, não é isso que acontece: mesmo sem entrar nos detalhes dos estudos existentes, o que podemos dizer é que a escola pública oferece um ensino de igual se não melhor qualidade que o ensino privado - ainda que, em muitos casos, possa não oferecer as regalias de classe que certos pais confundem com qualidade do ensino.

A escolha dos cidadãos que preferem a escola privada para os seus filhos (ou para si próprios) é absolutamente lícita, mas essa escolha deve ser sustentada com o seu próprio dinheiro. Da mesma maneira que é lícito que as famílias prefiram que os seus filhos comam num restaurante em vez de almoçar na cantina da escola, mas não é lícito que exijam o financiamento público do restaurante para que as refeições sejam depois aí servidas gratuitamente aos seus filhos.

Tal como noutras actividades sociais e económicas, é justo que exista iniciativa pública e iniciativa privada (aliás protegida por lei), é lícito que haja concorrência entre os dois sectores para atrair utentes ou clientes, é natural que haja circunstâncias onde o Estado subcontrata pontualmente serviços a entidades privadas, mas não é aceitável que o Estado financie as organizações privadas porque a lógica destas é, de facto, uma lógica diversa e frequentemente incompatível com a lógica do serviço público.

As organizações privadas podem ter uma lógica guiada pelo lucro, que as leve a preferir determinadas actividades e determinados sectores lucrativos do público, mas as organizações públicas, ao contrário, devem servir todos os cidadãos, incluindo aqueles cujo acompanhamento é extremamente oneroso.

No léxico da direita, as escolas são sempre classificadas de forma competitiva, em “modo ranking”: “esta escola é melhor do que aquela”. A este “modo ranking” corresponde sempre uma atitude de selecção: selecção prévia das famílias dos alunos (nível socio-cultural), selecção prévia dos alunos (currículo escolar, comportamento) e selecção ao longo do ano lectivo. A preocupação da escola privada não é recuperar os “piores” alunos mas exclui-los, para subir no ranking. Esta selecção existe de facto e para a provar bastaria fazer-se um teste cromático: veja-se a quantidade de alunos não-brancos nas escolas privadas sem financiamento do Estado e compare-se com a cor média dos alunos de uma escola pública. Um drone com uma câmara fotográfica poderia provar a discriminação a vinte metros de altitude.

Mas, se as escolas privadas se sentem bem no campeonato da selecção (algumas, à la Crato, pensam que é esse o seu dever, Deus lhes perdoe), as escolas públicas estão no campeonato da equidade. A primeira obrigação e a primeira preocupação da escola pública não é ser “melhor” do que a escola privada do lado, mas ser uma boa escola para todos os seus alunos e estar disponível para acolher todos os que lhe batam à porta. E só isso já é ser, de facto, melhor.

jvmalheiros@gmail.com

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