O caminho faz-se caminhando, desde que não haja um doppelganger pedonal

Há fugas no segredo de justiça. E quebras do sigilo fiscal. Telefones sob escuta. Há filmagens feitas às escondidas que aparecem no YouTube. E fotos expostas à revelia. Há roubo de identidade online. Clonagem de cartões de crédito. A privacidade é constantemente violada. Por mim, tudo bem. Convivo bem com isso. Pois nenhuma usurpação de identidade me atemoriza como o roubo de pedonalidade.

Sucede roubo de pedonalidade sempre que se verifica caminhada sincronizada. Um fenómeno do pedestrianismo que acontece quando, de súbito, reparamos, pelo canto do olho, que há um estranho a andar exactamente à mesma velocidade que nós. O nosso doppelganger pedonal.

Encontrar alguém que anda igual a nós, uma sombra humana, o nosso duplo do passeio, é uma descoberta aterradora. De repente, parece que estamos nus à frente de alguém. Só que em vez de ser à frente, é de viés. Alguém que nos espia as pendurezas, de esguelha. E sentimo-nos violentados. De fora, parece que marchamos com um compincha. Na realidade, somos inimigos.

É que, sem aviso, começa então um duelo. No plano do pavimento peleja-se pela posse da passada. Mas, num nível espiritual, é uma batalha pela nossa alma. Quem é o macaquinho de imitação desta cadência? É o que se vai decidir. No fim, só poderá haver um. O highlander daquela passada.

Uma bulha que ninguém quer. Robert Frost escolheu a estrada menos viajada para não correr o risco de encontrar alguém com quem tivesse de disputar o passo.

Qual a melhor estratégia para açambarcar a passada? (Ah, houvesse passeios na China do séc. VI a.C, para termos acesso às reflexões de Sun Tzu!) Fazê-lo abrandar e perder por abdicação? Ou levá-lo a estugar e perder por fuga? Certa vez fui tão forte que obriguei o outro caminhante a ajoelhar. Para apertar o sapato. Eram ténis de velcro.

Só vence quem mantiver a sua cadência inalterada, sem ceder. Mas, quando dois caminhantes igualmente guerreiros se encontram, pode haver armagedão pedonal. Um dia saí de casa e, pumba!, sincronizei-me com um tipo. Logo principiámos uma contenda que se viria a revelar épica. Irredutíveis, nenhum queria ser espoliado da sua passada. Por isso, andámos. E andámos. E andámos.

Quando demos por nós era noite e estávamos no Dafundo. (Eu moro ao pé do Rato.) Até que ele disse: “Mas, afinal, onde é que vai?” E eu: “Vou buscar a minha filha à escola. Está lá há 6 horas, espero que não fique aborrecida. E o senhor?” “Vou meter uma moedinha no parquímetro. A cirurgia que estava a fazer ia demorar mais do que o previsto.”

“A miúda vai ficar traumatizada”, disse ele, para me desconcentrar. “O guarda-nocturno fica com ela”, respondi. “E a operação? Não tem medo que o paciente morra?” Ele não cedeu: “Nã. Não opero. Sou só o anestesista.”

E continuámos a andar. Até que tive um momento de fraqueza, um momento em que duvidei das minhas capacidades. E parei. Perdi. Chorei apoiado na cancela. Ele ficou-me com a passada. E com a alma. Felizmente, recuperei-as logo a seguir, pois o comboio acertou-lhe mesmo em cheio. Mas podia ter acabado mal.

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