Nunca é tarde para continuar a trabalhar

Os idosos portugueses são os que trabalham até mais tarde na UE: abrem negócios aos 80, dão consultas médicas e tiram licenciaturas aos 70, vendem seguros ou fazem artesanato. Muitos precisam de complementar reforma, mas ninguém lhes dá emprego. A solução é fazer tudo por conta própria.

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Este Verão, António Ramos, de 80 anos e a mulher Ludovina, de 73, preparam-se para abrir a segunda geladaria em Lisboa. “Estou sempre à coca de um negócio e quando tenho uma ideia fixa faço tudo para a conseguir”, explica ‘Binita’, como lhe chama o marido. “Não deixo para amanhã, faço hoje.”

O casal de reformados decidiu no ano passado apostar na criação de gelados artesanais e, em Agosto, abriu em Campo de Ourique a geladaria Giallo com a ajuda da filha e do genro. No Verão tinham fila à porta, mas como as vendas neste bairro são muito sazonais vão arrendar um novo estabelecimento, numa zona histórica e turística de Lisboa, onde o fluxo de clientela seja mais constante, rentabilizando o negócio.

Desde que a geladaria abriu não tiveram um único fim-de-semana os dois. Ludovina nem mesmo um dia de folga tirou. “Não páro. Sou um furacão”, diz, explicando que mais do que um complemento para a sua reforma e a do marido, que não chega aos 400 euros cada um, o que a motiva a continuar a trabalhar é ser “incapaz de estar sem fazer nada”.

O seu dia-a dia é frenético e divide-se entre as duas lojas de arranjos de costura que tem em Lisboa e o trabalho junto do marido, ao balcão dos gelados, já depois de os outros estabelecimentos do casal fecharem as portas. Ludovina acorda pelas seis da manhã e às 6h30 está fora de casa. “Como me faz bem andar, vou a pé de Arroios, onde moro, até à loja de São Bento, parando apenas no Rato para tomar o pequeno-almoço.” Chega à loja ainda antes das 8h e organiza as tarefas da funcionária, que entra mais tarde. “Vejo as entregas para aquele dia, se for preciso desmancho as peças de roupa para ir adiantando trabalho.” 

Almoça por ali, atende os clientes e faz provas, e por volta das 19h fecha a loja, mete-se no autocarro e vai ter com o marido à geladaria. “A Giallo fecha às 21h no Inverno, às 22h no Verão mas muitas vezes só saímos mais tarde. Comemos aqui uma sopa e fruta e vamos para casa juntos”, diz António, que garante que por estar tão activo “nem se lembra” dos anos que tem. É ele quem durante a manhã faz as compras para as lojas da família e também para casa. E a partir do meio-dia e até à noite está ao balcão. Nas horas mortas escreve quadras que também entrega aos clientes. “No dia da mãe, quem levava um gelado também levava um versinho”, conta.

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António e Ludovina, 80 e 73 anos, respectivamente, continuam a trabalhar além da idade da reforma e tencionam abrir este ano mais uma geladaria rui gaudêncio

Como Ludovina e António há outros 208 mil portugueses que, no ano passado, continuavam a trabalhar para lá da idade da reforma, de acordo com o Inquérito ao Emprego do Instituto Nacional de Estatística (INE). Ou seja, mantinham-se no mercado de emprego depois dos 66 anos, um patamar que desde Janeiro passado subiu para os 66 anos e dois meses.

Os dados da agência europeia Eurofound (sigla para European Foundation for the Improvement of Living and Working Conditions) mostram, aliás, que os seniores portugueses são dos que mais trabalham na União Europeia, reformando-se também mais tarde do que a maioria da população dos restantes estados-membros. Dos 2,1 milhões de idosos portugueses, 11,3% continuavam activos em 2015, batendo recordes entre os estados-membros onde a média é de 5,5%.

Compensar os rendimentos perdidos

O número daqueles que no país continuam a exercer uma actividade profissional é, contudo, muito superior ao revelado pelas estatísticas. “Em Portugal os reformados não se acomodam e haverá muita gente a trabalhar de forma não declarada”, garante o sociólogo Jorge Caleiras, especialista em questões de emprego.

Esta perpetuação do emprego justifica-se, segundo este investigador de Coimbra, com dois grandes motivos. Por um lado, esta população quer continuar activa após a reforma, para a qual também contribui a mentalidade “de uma geração que foi educada para trabalhar e que, sobretudo nas zonas rurais, encara 'o não fazer nada' como uma forma de preguiça”. Por outro, porque devido às baixas pensões “existe a necessidade imperiosa de compensar rendimentos perdidos”.

Os últimos dados divulgados pela Segurança Social mostram que 80% dos idosos recebiam menos de 364 euros por mês de reforma em 2014. Já a média das pensões de velhice pagas por este organismo no ano passado não chegavam aos 460 euros, segundo a base de dados Pordata.

“A reforma implica sempre um empobrecimento”, resume o sociólogo do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, lembrando que a crise e o desemprego também empurraram muitos trabalhadores para uma aposentação antecipada, ficando com uma pensão inferior àquela que previam receber.

Os que se mantém no mercado de emprego serão sobretudo os profissionais mais qualificados ou então menos especializados, explica Caleiras. Grande parte dedica-se a tarefas ou às áreas que já exercia na vida activa.    

Foi o que fez António Pacheco que, aos 68 anos, se apresenta como o motorista de táxi com mais anos de serviço de Viana do Castelo: está ao volante há 47. Depois de se reformar há três anos, continuou a trabalhar para a mesma empresa, que tem três carros de praça. Mas faz um horário livre. “Tenho o carro e sou eu que zelo por ele”, explica o motorista. “Ficar na cama dá-me febre, preciso de circular, respirar o ar da rua."

Pacheco trabalha todos os dias da semana e só aos domingos sai de casa mais tarde, por volta das 11 horas. Durante o dia apanha clientes na cidade, ou pára o Mercedes 180 em frente à estação da CP à procura de viajantes. Nas horas mortas lê o jornal, livros de Vergílio Ferreira e ainda colabora com poemas e textos para os jornais regionais.

O dinheiro faz-lhe jeito para complementar a reforma de 400 euros, mas diz que no táxi não tira mais de 200 ou 250 euros por mês. “É pouco o que ganho extra, mas não há mais serviço”, lamenta, lembrando os tempos em que a cidade enchia para o festival de cinema ou a exposição canina internacional. Já transportou figuras como a actriz Beatriz Costa, que não falhava as festas da Senhora da Agonia, ou o escritor Pedro Homem de Melo, que tinha casa em Afife. O que recebe não dá para extravagâncias, mas cobre a renda do apartamento, as despesas da casa e um café com os amigos. Com quatro filhos e à espera do oitavo neto, não pensa encostar o carro. “Vou trabalhar até poder”, garante.

“Nem senti a reforma”

O mesmo garante o cardiologista António Mata Antunes, de 76 anos. Desde que se aposentou da direcção do serviço de cardiologia do Hospital de Santa Marta, em Lisboa, em 2005, continua a dar consultas em hospitais privados e divide o tempo entre Lisboa e Moura, no Alentejo, onde revitalizou o olival nas terras herdadas do pai. Tem hoje 25 hectares de oliveiras de regadio, enviando para o lagar quase 100 toneladas de azeitona por ano, e na sua propriedade pastam 50 vacas da raça limousine e os seus bezerros.  

É precisamente na agricultura e na pecuária que continua a trabalhar a grande maioria dos que atingiram a idade da reforma no país. Em 2015, eram mais de 129 mil aqueles que se dedicavam ao sector primário, quase o dobro dos que continuavam activos nos serviços, 66 mil, parte deles em profissões liberais como a medicina.

“Nem senti a reforma a não ser no jantar de despedida que os colegas do hospital me fizeram”, garante o médico. Mal saiu de Santa Marta e até 2011 assumiu a presidência da Cooperativa Agrícola de Moura e Barrancos, que ajudou a modernizar e foi galardoada, em 2007, pelo então chefe de Estado Cavaco Silva com duas medalhas de Ouro no concurso nacional de azeite virgem extra. Entre 2008 e 2014, o clínico passou também a liderar a Associação Nacional de Fibrose Quística, da qual faziam parte alguns dos doentes que seguira no hospital.

Entre as consultas e a agricultura, António Mata Antunes conseguiu ainda realizar um sonho antigo: voltou à faculdade em 2012 para tirar o curso de História. “Queria fazer alguma actividade de aprofundamento cultural e gosto do ambiente universitário”, explica. Entrou na Clássica em Lisboa numa das dez vagas abertas para quem já tem licenciatura e escolheu as cadeiras de forma a compatibilizar os estudos com os doentes. “Lembro-me de entrar na aula e de duas jovens, certamente impressionadas com os meus cabelos brancos, virem atrás de mim. Pensavam que eu era o professor”, recorda a rir-se. Fez o curso em sete semestres, em vez dos seis que são norma, “porque nem sempre foi fácil conciliar tudo”. Terminou com 18 a várias cadeiras, sem estudar por aí além. “Depois da medicina a História é a minha paixão e estava sempre muito atento”, justifica. Terminou a licenciatura em Fevereiro passado, e espera ainda pelo diploma, mas a média andará pelos 16.

Para a socióloga e doutorada em gerontologia Stella Bettencourt da Câmara, há cada vez mais licenciados a chegar à idade da reforma, o que tem impacto na forma como desejam passar esta fase da vida. Muitos querem continuar intelectualmente activos, voltando a estudar, aprendendo novas competências ou até mantendo-se a trabalhar. “As universidades da terceira idade estão cheias de alunos”, afirma esta investigadora do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP). “Mas as ferramentas que os mais velhos ali adquirem não têm muitas vezes correspondência numa inclusão profissional, mesmo quando é essa a intenção”, explica.

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O cardiologista António Mata Antunes, 76 anos, continua a dar consultas. Divide o tempo entre Lisboa e Moura, onde produz azeite desde que revitalizou o olival da família, e ainda voltou à universidade para cumprir o sonho antigo de ter o curso de Históri rui gaudêncio

A especialista fala num “grande preconceito social” em relação aos idosos, alertando que “têm de passar a ser olhados de outra forma”. Não só porque esta é uma população em crescimento - em 2050 metade dos portugueses terá mais de 50 anos - mas porque são mais saudáveis e escolarizados do que as gerações anteriores e ainda têm muito para dar ao país. “Não faz qualquer sentido que o Estado obrigue à aposentação compulsória da Função Pública aos 70 anos, porque há muita gente, por exemplo nas universidades, apta a continuar a ser útil no seu trabalho”. Para Stella Bettencourt da Câmara a idade da aposentação devia, por isso, tornar-se flexível: “A sociedade devia dar a todos os que trabalham a possibilidade de escolher se querem continuar activos”.

“Acham-nos velhos para trabalhar”

Para quem já saiu do mercado de trabalho essa é uma tarefa quase impossível, reconhece a presidente da Associação de Aposentados, Pensionistas e Reformados (APre!). “Se para os jovens já é difícil arranjar emprego, para os mais velhos nem se fala”, alerta Maria do Rosário Gama, lembrando que se hoje há um crescente número de pessoas reformadas a dedicar-se ao voluntariado como forma de se manterem activas, muitas outras gostariam de poder trabalhar e não conseguem.

Nos sites de emprego multiplicam-se anúncios a pedir reformados para tarefas administrativas, a tempo completo ou em part-time, para vendas em imobiliárias ou para serviços de segurança e motorista. Mas muitos destes anúncios tanto apelam a idosos como a desempregados ou jovens à procura do primeiro emprego e, em regra, oferecem baixos salários, reconhecem os especialistas.

Ao mesmo tempo, e “até devido à crise e ao aumento do desemprego, há quem considere quase um insulto que um idoso queira ou precise de trabalhar”, lamenta a antiga directora da Secundária Infanta Dona Maria, em Coimbra. “Ainda há uma grande discriminação em função da idade.”

Maria conhece bem esta realidade. Aos 70 anos já perdeu a esperança de conseguir um novo emprego. “Respondi a tantos anúncios... mas nada”, lamenta a cozinheira, que foi “empurrada” para a reformada antecipada aos 62 anos, por já não ter direito a receber mais subsídio de desemprego. Quando ia às entrevistas de trabalho diziam-lhe: ‘depois ligamos-lhe’, mas nunca ligaram. “Acham-nos velhos para trabalhar, mas se soubessem o que já fiz...”.

Maria trabalhou em restaurantes e marisqueiras em Lisboa e no Ribatejo e sabe fazer uma centena de pratos diferentes. Houve alturas em que acumulou empregos para aumentar o rendimento da família. “Estive em Alcântara em vários restaurantes que já fecharam. Houve alturas em que trabalhava também num restaurante no Bairro Alto, às vezes até às três da manhã”, vai recordando.

Inaugurou o Centro Comercial das Amoreiras, em 1985, chefiando as refeições num restaurante que acabou por fechar. E depois aos 48 anos mudou-se com o marido para Coruche. Foi cozinheira no Campino, um restaurante na vila que já encerrou e é hoje uma loja de produtos chineses.

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Maria trabalhou toda a vida como cozinheira. Agora, com 70 anos, já perdeu a esperança de conseguir um novo emprego nuno ferreira santos

Há três anos, depois de o marido morrer, voltou para a capital para junto dos três filhos e dos netos. Ainda esteve a ajudar um amigo num restaurante, que acabaria nas mãos de um novo dono. Até agora, não encontrou mais nada. Vive sozinha num pequeno apartamento num bairro tradicional, com a cadela Princesa. Faz renda, vê televisão e dá uma ajuda na casa da neta mais velha, de 27 anos.

Habituou-se a fazer "ginástica" para que o dinheiro chegue ao fim do mês. Vive com uma reforma de 312 euros e outros 300 e pouco da pensão de sobrevivência do marido. “Tenho o dinheiro contado porque pago 350 euros de renda. Depois há a comida, água, luz, TV cabo, a roupa e os remédios, porque tenho osteoporose e faço medicação para a coluna”, conta. Para poupar na farmácia, raciona os remédios. “A medicação para as dores nas costas devia tomá-la todos os dias, mas como não posso pagar, tomo só quando a coluna me dói”.

Os filhos “estão bem na vida” e constantemente a perguntar se precisa de ajuda, mas a cozinheira não gosta de lhes pedir nada. Depois de cinco décadas entre tachos e panelas, Maria sabe o que faria caso tivesse sorte ao jogo: “Se ganhasse o Euromilhões, abria uma restaurante de cozinha tradicional e continuava a trabalhar”.

Muitos trabalham em auto-emprego

Preocupada com estes problemas, a Comissão Europeia (CE) lançou, no mês passado, uma campanha internacional para a promoção de “locais de trabalho saudáveis para todas as idades”, onde alerta para a necessidade de os trabalhadores permanecerem mais tempo no activo, de forma a rentabilizarem a sua reforma. Nesse alerta, a CE apela às empresas e à indústria para que ajustem as funções dos funcionários, criando alternativas laborais para uma população cada vez mais velha e com muita experiência acumulada.

Em Portugal, “as empresas só agora começam a despertar para esta realidade”, admite Susana Schmitz, coordenadora-geral da empresa Projecto R, criada há um ano e meio para dar informação e ajudar trabalhadores a planearem melhor a sua reforma, através de um projecto de vida. “As empresas deviam fazer o reajustamento de funções e aproveitar o conhecimento acumulado de quem está em fim de carreira, permitindo-lhes continuarem a trabalhar de forma mais flexível”, diz a especialista em recursos humanos. Em vez disso, “põem-nos de parte ou mandam-nos para casa”.

Perante a falta de resposta do mercado, é através do auto emprego que a esmagadora maioria dos séniores e dos reformados continuam a exercer uma profissão. Um estudo do Eurofound que, em 2012, analisou os rendimentos após a reforma da população europeia revelava que em Portugal 85,9% dos que trabalhavam após os 65 anos o faziam como trabalhadores independentes.

Foi o que fez António de 69 anos, um antigo bancário que se aposentou ainda antes dos 50 anos preferindo trabalhar por conta própria. Começou por fazer vendas directas de material em aço inoxidável  e mais tarde de almofadas ortopédicas e produtos ligados à saúde. Mais tarde dedicou-se aos seguros, onde continua a trabalhar como mediador .

“Trabalhei como supervisor de um grupo de mediadores mas depois fiquei por minha conta e criei uma carteira de clientes seleccionada que me permite estar activo sem grande stress”, explica António, que trabalha no apartamento onde vive com a mulher em Seia, na Guarda. “Tenho um escritório em casa e basta-me um computador e um telefone para conseguir estar a trabalhar”.

É no início e final do mês que tem mais actividade, porque é a altura de cobrar recibos. Sai todos os dias por volta das 10 horas e vai ter com clientes. Mas reserva duas tardes por semana para dedicar-se aos três hectares de terreno numa aldeia perto da cidade, que herdou do pai. “Comprei duas moto-serras para cortar lenha, tenho uma horta e crio galinhas”, conta, dizendo que o importante na reforma é continuar activo e ter espírito de trabalho. “Tenho espondilose mas isso não me impede de trabalhar no campo, porque não tenho dores. E muitas vezes vou ajudar amigos e clientes a serrar, nas vindimas ou a apanhar fruta. Gosto deste contacto com a natureza.”

A mulher de António, Ana, de 66, também descobriu após a reforma uma nova actividade: faz bonecos de tricôt que tiveram tanto sucesso que já os vende em feiras de artesanato. Até na sede do PSD em Seia há um cestinho com um boneco de neve feito por si, com cachecol e barrete cor-de-laranja fez questão de entregar nos 40 anos do partido, com o qual simpatiza.

 “A minha mãe era costureira e eu nunca quis pegar numa agulha”, recorda a antiga funcionária pública. E foi uma tia, com quase 90 anos e que tinha muitas revistas de tricôt dos anos 50 que insistiu e a incentivou a dedicar-se às agulhas. “Comecei a fazer bonecos para as netas e agora vou a feiras e até já tenho encomendas para a França e a Suíça”. No Facebook tem uma página (Artes da Ana Cabral) onde é possível ver dezenas das suas peças de artesanato  – presépios, porta-chaves, bonecas de tecido pintadas à mão, que a Associação de Artesãos da Serra da Estrela tem ajudado a promover nas feiras e nas actividades onde participa.

Ana admite que o que ganha na venda dos seus bonecos não é grande complemento da reforma, que não chega aos 700 euros: “Faço mais para me distrair do que como ganha-pão. E as minhas netas adoram. Têm quase todos os bonecos que já fiz.”

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