“Nos países ricos já comemos mais do que o que nos faz bem”

O especialista em redução do desperdício alimentar Tristram Stuart critica a actuação dos supermercados. Boa notícia: há cada vez mais organizações a “promover a fruta imperfeita”.

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Rui Gaudêncio

Aos 15 anos, Tristram Stuart começou a alimentar os porcos da sua quinta, no Reino Unido, com restos de alimentos trazidos de supermercados. Nascia assim a sua Pig Idea: canalizar o que seria desperdício alimentar para os animais. O tema do desperdício alimentar fez de Tristram Stuart um activista internacional, levou-o a criar a organização Feedback, a escrever dois livros (The Bloodless Revolution e Waste: Uncovering the Global Food Scandal), e a vencer o prémio internacional do ambiente, o Sophie, do Observer Food Monthly.

Concluiu que menos de um quarto dos alimentos que os EUA e a Europa deitam fora seriam suficientes para alimentar as mil milhões de pessoas que passam fome. E que a água necessária para cultivar o que vai para o lixo daria para satisfazer a necessidade de 9 mil milhões de pessoas. Esteve em Lisboa para a Conferência da National Geographic 2017, que na quinta-feira decorreu no Teatro Tivoli BBVA em Lisboa, e que juntou ainda a fotógrafa Jodi Cobb e a primatóloga Jane Goodall (ver pág. 22 e 23).

Conseguiremos algum dia viver sem desperdício alimentar?
Não, isso não será possível. Mas temos um alvo traçado pela ONU nos objectivos do milénio: reduzir o desperdício alimentar para metade até 2030. É ambicioso, mas é totalmente fazível. Já vemos empresas, países inteiros, a mostrar que se consegue esse tipo de redução em relativamente pouco tempo.

Porque é que é impossível evitar?
Haverá sempre desperdício alimentar. Se eu deixar cair um alimento no chão ele vai ser desperdiçado. O importante é não nos focarmos no desperdício marginal. A questão central é o sistema. Não podemos ter um sistema que explora a natureza para, sem tréguas, a transformar em dinheiro, de formas que não beneficiam o ambiente nem a saúde humana. O desperdício alimentar é apenas um sintoma de um sistema paradoxal: dizem-nos que temos de duplicar a produção de comida até 2050 para alimentar as 9 mil milhões de pessoas que se prevê que o planeta venha a ter. Empresas como a Monsanto usam essa ‘urgência’ como uma desculpa para desbastar as florestas tropicais, para transformar áreas de biodiversidade em zonas onde podem produzir mais alimentos, com mais lucros.

Essa é a razão para haver um excesso de alimentos à nossa volta?
Sim, claro. As pessoas dizem: necessitamos de toda esta comida. O problema está na palavra “necessitar”. Se esta sala estiver com 200 pessoas e se convencermos toda a gente que precisa de uma lata de Coca-Cola, então podemos dizer que necessitamos de 200 latas de Coca-Cola para responder à procura. Mas se olharmos para a palavra “necessitar” em função das necessidades humanas, será quase o oposto. Nos países ricos já comemos mais do que o que nos faz bem. Desperdiçamos um terço dos alimentos produzidos no mundo inteiro. E a produção alimentar é a maior fonte de emissão de dióxido de carbono, de desflorestação, de extinção de espécies, e é de longe o maior consumidor de água potável. Tudo isto nos diz que se queremos deixar aos nossos filhos um planeta funcional, temos de olhar para a forma como produzimos alimentos.

Porque é tão difícil mudar de mentalidade?
Claro que a mentalidade é um dos factores, mas somos animais, e as grandes empresas gastaram milhões de dólares para que este animal em particular ingira mais comida do que a que precisa. Evoluímos num ambiente de escassez e naturalmente, quando há abundância, comemos mais do que precisamos. O problema é que agora, cada vez que vamos a um supermercado, temos abundância e compramos mais do que precisamos. E tudo o que não conseguimos comer vai para o lixo. Viu a história do macaco na Tailândia? Vivia nas ruas a comer toda a comida que as pessoas deitavam fora, e tornou-se tão obeso que já não se conseguia mexer, teve de ir para o hospital. Nós somos este macaco. Não evoluímos para sobreviver num ambiente de abundância permanente e é isso que as grandes empresas andam a explorar.

Poderíamos assumir que para as cadeias de supermercados seria mais barato combater o desperdício. Mas não é isso que fazem, pois não?
Se olharmos para a percentagem de comida que é perdida em toda a cadeia de abastecimento, os supermercados representam uma pequena parte. E isso porque eles têm um enorme poder nesta cadeia. Têm todos na mão. Em vez de serem eles a desperdiçar, levam os outros a fazê-lo. Se, por exemplo, houver uma enorme colheita de laranjas, e eles não venderem o suficiente, dizem aos produtores: “Já não precisamos das vossas laranjas, temos aqui umas que estão perfeitinhas e as vossas não.” Se virem que há iogurte ou fiambre que está próximo do prazo de validade, vão dizer ao produtor que já não querem [a encomenda que tinham feito]. É o produtor que fica com as perdas dos produtos, não os supermercados. Há também os que se livram dos desperdícios para os atirar para os cestos dos consumidores, com promoções. Usam esse poder para perder o menos possível. O Reino Unido aprovou uma legislação em 2013 precisamente para impedir os supermercados de injustamente passarem esse desperdício para os fornecedores.

É o que todos os países deveriam estar a fazer?
A minha organização, a Feedback, teve imenso sucesso em galvanizar um movimento político e a sociedade civil na Europa – tivemos uma grande vitória no Parlamento Europeu. Esperamos que venha a ser aprovada em toda a Europa.

E enquanto cidadãos o que devemos fazer? O que faz em sua casa?
É muito difícil apontar para o que faço. É óbvio a partir do momento em que se reconhece que a comida é demasiado valiosa para ser deitada para o lixo. Se tivermos uma banana que está a ficar preta vamos colocá-la no frigorífico e fazer um batido com ela. Se há restos de uma refeição não os vamos deitar para o lixo, vamos evitar o trabalho de cozinhar no dia seguinte e comer os restos. Vamos assegurar-nos que quando vamos comprar comida não levamos mais do que aquilo que iremos conseguir comer. Desde há milhares de anos que a gastronomia tem evoluído para que sejam aproveitadas todas as sobras de todas as partes dos animais, das plantas, de cada refeição, de pão duro – está tudo lá, na nossa cultura indígena.

Num artigo seu no The Guardian fazia esta pergunta: “Porque é que temos um sistema que transforma produtos de qualidade em lixo?” Porque estamos tão obcecados pelos alimentos com uma forma perfeita?
A boa notícia é que a “comida perfeita” está agora a sofrer um revés e há imensas organizações a promover e a vender a fruta imperfeita.

Temos em Portugal...
… A Fruta Feia, sim, uma óptima organização. E há equivalentes em todo o mundo. Até supermercados em várias partes do mundo – Reino Unido, EUA, Canadá, muitos países europeus – agora promovem a fruta feia. Porquê? Porque fomos desafiar os supermercados, as pessoas, a não rejeitarem comida simplesmente por não ser toda lisinha. O sistema leva o agricultor a desperdiçar um terço da sua produção, é óbvio que isso não é desejável – não conheço absolutamente ninguém que ache isto bem. É uma daquelas coisas que apareceram porque os supermercados impuseram aqueles padrões, mas ninguém o pediu.

Mas como chegámos a essa uniformidade, que não é natural?
Uma das razões é que ajuda o retalhista a ter um fluxo constante que mantém os preços baixos e a disponibilidade permanente.

Como é que faz baixar os preços se estamos a rejeitar uma fatia tão grande de produção?
Suponha que todos os anos tem de comprar laranjas para o seu supermercado. Se houver um ano em que não há muitas laranjas, os preços sobem. Faz mais sentido para si encorajar os agricultores de todo o mundo a produzirem imensas laranjas para que num ano mesmo mau possa ainda ter aquelas laranjas que normalmente rejeitaria, e dizer: “Este ano, não nos importamos com os padrões estéticos”. É exactamente isso que eles fazem: nos anos em que há muita produção, impõem os padrões estéticos, nos anos maus já “generosamente” os relaxam e aceitam. Usam esses padrões como uma válvula de segurança para não assumir a viabilidade da fruta que é produzida, e para garantir que há sempre produto no mercado a preços baixos.

Há mais razões?
Sim, há outras. Num mundo de abundância infinita, se é que o conseguimos imaginar, não teria importância rejeitar cenouras tortas e deitá-las para o campo e dar aos cavalos. Podíamos dar-nos ao luxo de dizer: “Só queremos as cenouras que conseguimos descascar de cima a baixo de um só gesto” – a sério, é isso que os supermercados dizem! Se tivermos recursos infinitos sem impacto negativo não tem importância termos esses padrões. Mas as grandes empresas não pagam pelos custos externos do sistema que criaram. Não pagam as alterações climáticas, não pagam a erosão do solo. Olhem para os custos no planeta e então podemos dizer que desperdiçar um terço das cenouras não é apenas estúpido, é criminoso.

Deveríamos colocar esse preço nos produtos?
Sim. Temos um sistema fechado chamado planeta Terra e nada é externalizado. Porque é que temos um sistema que está a destruir o nosso próprio habitat? O que organizações como a Feedback e a Fruta Feia estão a fazer é, mesmo sem regulamentação, impor um preço. Podemos danificar a reputação dessas empresas que são responsáveis pelo maior desperdício. Ok, não pagam as cenouras tortas, mas mostramos fotografias com montanhas de cenouras que aquele supermercado desperdiçou e isso tem um custo. E é por isso que há empresas a ligar-nos para saber o que podem fazer para reduzir o desperdício. Sabem que este é um assunto com impacto, que para a sociedade onde estão inseridos esse desperdício é totalmente inaceitável e que por isso traz um custo para o seu negócio. Sabem que se não o evitarem, as pessoas vão deixar de fazer lá compras, por estar tão desalinhado com os seus valores. É um custo imposto, mesmo sem legislação: é imposto por nós. Temos esse poder: se não gostamos do que eles estão a fazer, vamos comprar à Fruta Feia.

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