Nos corredores do IPO do Porto há um circuito que salva vidas

É um dos cancros de que menos se fala mas todos os anos surgem 2500 novos casos em Portugal. Como os de Antónia e Adriano, que viveram na pele “a agressividade” do cancro da cabeça e pescoço e foram salvos por uma equipa multidisciplinar.

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Nos corredores da clínica de cabeça e pescoço do Instituto Português de Oncologia (IPO) do Porto também por lá andam sorrisos de esperança, como o de Adriano Santos, 64 anos, que se diz “um homem de sorte” por ter sobrevivido ao cancro, ainda que “demasiado tarde para salvar a laringe, não tendo outro remédio senão uma prótese fonatória”. Adriano é um dos 2500 novos casos de cancro de cabeça e pescoço que todos os anos surgem no país. Hoje assinala-se a doença em todo o mundo para alertar para a importância do diagnóstico precoce, que Adriano deixou escapar.

“A doença é muito agressiva, porque em poucas semanas as lesões crescem muito e o doente começa a ter sintomas”, alerta Cláudia Vieira, médica oncologista desta clínica especializada do IPO. O facto de a comunidade desconhecê-la e os sintomas a ela associados ainda agravam mais o cenário. Como sucedeu com Adriano Santos, que andou um ano de consultório em consultório sem saber o que tinha até ser submetido a uma laringectomia total. “Sentia o incómodo de um caroço na garganta e ninguém acertava com o diagnóstico”, conta este engenheiro civil.

Também Antónia (nome fictício), 60 anos, ficou “quase maluca” quando descobriu que tinha carcinoma da língua depois de ter corrido vários especialistas, incluindo privados, que sempre lhe garantiam não ter nada de grave. Antónia nem sequer era considerada de risco, pois não tinha um passado de álcool ou tabaco. Já Adriano Santos, a quem foi diagnosticado um carcinoma da laringe, foi fumador até 2013. É neste grupo de risco dos fumadores e ex-fumadores que se registam 85% dos 2500 casos anuais em Portugal, sendo as taxas de incidência e mortalidade das mais elevadas da Europa.

No IPO-Porto há hoje uma sessão formativa para os profissionais de saúde e a comunidade. Além de sessões de rastreio para quem tiver um dos factores de risco há pelo menos três semanas: nariz entupido ou hemorragia nasal, úlceras e/ou manchas brancas ou vermelhas na boca, dor de garganta, rouquidão persistente e nódulos do pescoço.

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Adriano Santos, engenheiro civil de 64 anos: “Sentia o incómodo de um caroço na garganta e ninguém acertava com o diagnóstico” Fernando Veludo/NFactos

O objectivo é evitar que cheguem com a doença “em estado muito avançado”, como sucede com a maioria dos 300 a 400 doentes que o IPO recebe anualmente. “A maioria dos doentes com cancro espinocelular da cabeça e pescoço morre nos primeiros cinco anos e 30% nos primeiros 12 meses”, revela a médica oncologista. E esta acaba por ser a sétima causa de morte por cancro a nível mundial, sendo diagnosticados cerca de 600 mil novos casos anualmente. A laringe, a faringe e a cavidade oral são as áreas mais afectadas. Os últimos números conhecidos que dão conta da verdadeira dimensão da doença em Portugal são de 2010, com 2800 casos, mais 300 do que em 2007.

“Estou curada”

“Quando chegam demasiado tarde ao IPO, a opção de tratamento passa logo pela quimioterapia ou pela radioterapia com quimioterapia para tentar preservar a anatomia, explica a médica oncologista. O que não foi o caso dos dois pacientes: Adriano ficou sem a laringe e Antónia teve de reconstruir a língua. “Mas estou curada depois de muito sofrimento”, desabafa Antónia, que teve “muito medo do que por ali vinha quando soube o diagnóstico”. Assustava-a pensar se nunca mais iria conseguir falar direito ou ter paladar. Não conseguir pronunciar uma única palavra também foi um dos receios de Adriano, mas logo o descansaram que a prótese iria resolver o problema. Com um à vontade digno de se lhe tirar o chapéu, o engenheiro lá vai perguntando, em jeito de brincadeira, como se nada fosse com ele: “Quer ver a minha prótese fonatória mãos livres?” Rapidamente remove e substitui a que tem no pescoço “pelas mãos livres, para não estar sempre a carregar no botão enquanto fala”. Lá acrescenta que esta é mais para o discreto, sobretudo quando os colarinhos da camisa a escondem. “Ficam a pensar que estou rouco”, atira, enquanto conta que faz uma vida perfeitamente normal e lembra “a sorte” que teve por não ter sido submetido a quimioterapia.

Entre um primeiro diagnóstico de azia com prescrição de medicamentos para o estômago e a notícia do cancro que o deixou sem palavras, passaram-se meses a comprimidos prescritos pelos vários médicos. “Devia estar tudo muito no início. Um ano depois, vim a um otorrinolaringologista no Porto que detectou que uma corda vocal não vibrava muito bem.” Com esta consulta chegou também a notícia do carcinoma da laringe, a estranheza e depois o choque. Foi logo encaminhado para o IPO para uma intervenção cirúrgica. Mas já não havia muito a fazer: “Tive de tirar a laringe e tenho uma prótese desde 2014 que poderia ter sido evitada se o carcinoma tivesse sido detectado a tempo.”

Adriano teve uma recuperação muito difícil e morosa: “Fui alimentado por um tubo e só um mês e meio depois da cirurgia é que falei pela primeira vez graças à prótese.” Agora só percorre os corredores do IPO uma vez por mês para ir buscar os filtros para a prótese e de meio em meio ano para a consulta.

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Todas as segundas e sextas-feiras são analisados vários casos pelos diferentes especialistas que se reúnem numa sala: “Este modelo é único” Fernando Veludo/NFactos

Quando o mundo desaba

Olhar brilhante e com fome de vida, Antónia acredita que foi a sua persistência e a do marido que a salvaram. Se lhe diziam que não era nada, não desistiam, porque não era normal uma “simples” afta na língua estar sempre a inflamar e não melhorar com os frequentes bochechos de produtos farmacêuticos. Depois de uma primeira consulta com o médico de clínica geral e familiar do centro de saúde até ao diagnóstico “demorou demasiado tempo”. Indignado, o marido lá vai dizendo: “Foste a especialistas e andaste enganada durante algum tempo.” E Antónia responde: “Até o otorrinolaringologista garantia que não era nada de grave.” Depois, a médica dentista assustou-a ao dizer que “não lhe cheirava nada bem a lesão estar sempre a inflamar”. E foi aí que o mundo dos dois desabou. “É ridículo, porque se não tivéssemos pago as despesas médicas e a biópsia, quando chegasse ao IPO já não teria cura”, desabafa Antónia.

Hoje acredita que poderia ter evitado a cirurgia da língua, em Maio deste ano, com reconstrução com retalho, se o problema tivesse sido diagnosticado mais cedo. “Está a ver o meu braço? Retiraram daqui tecido para reconstruir a língua”, diz com alívio estampado no rosto, enquanto o marido atira que “foi uma cirurgia complicada”. Pouco tempo depois já estava a falar sem precisar de terapia da fala. “E, muito importante, tenho paladar. Nem sequer tive dores”, conta, recordando o filme que foi “a difícil semana” depois da cirurgia em que não dizia uma palavra e usava um bloco de notas para comunicar.

Ainda hoje, Antónia lembra a primeira vez que foi ao IPO e a receberam calorosamente. “Quando aqui se chega, é ter esperança e deixar tudo nas mãos da equipa médica multidisciplinar”, constituída pelas especialidades de otorrinolaringologia, estomatologia, oncologia e radiologia e, por vezes, pela cirurgia plástica. A equipa traça um plano terapêutico que, por norma, passa pela cirurgia e/ou pela radioquimioterapia. “A maioria dos casos vai para cirurgia, que deve ser o tratamento preferencial”, adianta a oncologista Cláudia Vieira.

Todas as segundas e sextas-feiras são analisados vários casos pelos diferentes especialistas que se reúnem numa sala. “Nenhum doente oncológico segue para tratamento sem ver o seu caso discutido nesta consulta de grupo”, explica o coordenador da clínica e director do serviço de otorrinolaringologia, Eurico Monteiro. Aliás, continua Cláudia Vieira, “este modelo no mesmo espaço físico, com todos os especialistas disponíveis, é único”.

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Antónia, 60 anos, ficou “quase maluca” quando descobriu que tinha carcinoma da língua depois de ter corrido vários especialistas Fernando Veludo/NFactos

Uma espécie de circuito

Olhando para trás, Antónia e Adriano recordam bem a espécie de circuito a que foram submetidos quando chegaram à clínica para combinação de tratamentos que os diferentes estádios da doença exigem. Primeiro, foram recebidos pela enfermeira e ainda tiveram uma consulta do foro cirúrgico. E foram avaliados na tal consulta de grupo multidisciplinar.

Mas na primeira consulta de enfermagem, que não foi o caso deles, também se despistam situações de pobreza, desnutrição ou necessidade de acompanhamento por uma assistente social, porque chegam muitas pessoas de estratos sociais mais baixos, “que vivem em barracos ou em garagens sem rendimentos económicos”, conta a enfermeira Aida Cardoso. Por vezes há ainda a necessidade de serem apoiados por um psicólogo, porque, alerta Cláudia Vieira, “há pacientes muito debilitados, assustados com a doença, que é muito grave e tem impacto na imagem corporal, na fala e na deglutição”.

Também o estomatologista e o nutricionista têm aqui um papel chave. E são ainda chamadas a intervir as especialidades de pneumologia, para atacar factores de risco como o tabaco e o álcool. Depois do tratamento adequado, o doente passa para a fisioterapia, treinos de deglutição e terapia da fala, dependendo do caso.

Antónia faz questão de deixar o seu testemunho a outros doentes como ela, para que “não desanimem e não pensem logo que vão morrer, porque há sempre esperança e casos de sucesso”, como o dela e de Adriano, ainda que continuam a ser seguidos no IPO. “Mas agora só regresso daqui a três meses”, diz Antónia, por entre risos. “Quero deixar um alerta para as pessoas para que, ao mínimo sintoma, consultem o médico de família.”

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