Nem oito nem oitenta…

Um hospital psiquiátrico tem de vigiar os que estão à sua guarda.

A mais recente condenação do nosso país por violação dos direitos humanos deu-se no passado dia 28 de Março, quando o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) declarou que Portugal tinha violado o direito à vida de um cidadão que estava internado no Hospital Psiquiátrico Sobral Cid.

A história contou-a a jornalista Ana Henriques nesse mesmo dia nas páginas do PÚBLICO: “António José Carvalho tinha 35 anos e um historial de problemas mentais atrás de si quando se atirou para debaixo de um comboio que ia a passar em Coimbra. Não era coisa inédita: menos de um mês antes, o operário da construção civil já tinha tentado acabar com a vida, e do seu registo clínico faziam parte as expressões “historial de debilidade mental”, "surtos delirantes", “psicose maníaco-depressiva” e “tentativas de suicídio”. Naquele dia, faz no final de Abril 17 anos, ausentou-se uma vez mais do Hospital Psiquiátrico Sobral Cid sem que ninguém desse por isso. Quando descobriram, por não ter aparecido para jantar, era demasiado tarde: não mais cruzaria as portas desta unidade de saúde de Coimbra, onde tinha sido internado pela sétima vez desde 1984.”

A família procurou responsabilizar judicialmente o hospital pela morte do António José, uma vez que aí tinha estado hospitalizado, por diversas vezes, pelas perturbações mentais de que sofria, e o pessoal do hospital devia ter evitado que o mesmo se ausentasse das instalações e se fosse atirar para a linha férrea perto do hospital. Não tiveram sorte: para os tribunais não havia qualquer nexo de causalidade entre o suicídio do António José e o comportamento do pessoal do hospital. O regime do hospital era um regime aberto, pelo que os doentes podiam entrar e sair, não havendo barreiras físicas. Louvavelmente, no recurso que a mãe apresentou para o Supremo Tribunal Administrativo, o Ministério Público defendeu que o hospital devia ser condenado: dado que o registo médico indicava que o António José tinha tentado suicidar-se em diferentes ocasiões, e tendo em conta que tinha sido admitido, pela última vez, no hospital, devido a uma tentativa de suicídio, era provável e deveria ter sido prevista uma nova tentativa. Fazia parte do dever de cuidado do hospital ter aumentado o acompanhamento do António José e, com isso, não desvirtuava o regime de "portas abertas". Mas o Supremo Tribunal Administrativo não concordou e manteve a absolvição do Hospital Sobral Cid; no fundo, tinha sido o destino, o hospital nada podia ter feito uma vez que o António José tinha a sua hora marcada.

Mas a queixa apresentada em Estrasburgo teve outro destino: o TEDH considerou que Portugal incorrera na violação do artigo 2.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, que obriga os Estados a respeitar e a proteger a vida das pessoas e condenou o nosso país a indemnizar a mãe do António José na quantia de 26.000 euros.

Escreveu-me, então, um leitor preocupado: “O tribunal europeu, tantas vezes certeiro na reposição da justiça, parece, neste caso, querer que o Estado seja tão paternalista para com os cidadãos que não lhes deixe um mínimo de autonomia […]. Não gostaria de viver num Estado (médicos, polícias, funcionários públicos) tão diligente como estes juízes pretendem.”

Uma opinião pertinente, mas da leitura da decisão do TEDH no caso Fernandes de Oliveira v. Portugal não me parece que o TEDH defenda um Estado policial. O que o TEDH fez foi constatar que, apesar da grave doença mental do António José, da sua recente tentativa de suicídio que era uma possibilidade permanente e, ainda, das suas constantes fugas das instalações do hospital, este não tinha estabelecido nenhum regime de controlo e fiscalização individual, até para poder dar pela sua ausência mais rapidamente, já que quando deu pela sua falta o António já estava morto.

Um doente mental com tendências suicidas que é internado num hospital psiquiátrico tem direito a que, pelo menos, tentem evitar esse resultado fatal e a não ficar ao “deus-dará”. Como disseram os advogados da mãe do António José, Pais do Amaral e Ana Sousa, esta decisão é um alerta para os tribunais portugueses mas também, espero eu, para os hospitais portugueses.

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