Não quer ser "ela". Não quer ser "ele". Só quer ser uma pessoa

Kelsey tem 18 anos. A sua identidade não encaixa na escolha que sistematicamente se vê na obrigação de fazer entre masculino/feminino. As expressões “sem género” ou “género não binário” às vezes servem, mas não resolvem tudo.

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Kelsey passa os olhos pelas T-shirts no Five Below, uma das poucas lojas que se podem considerar mais originais neste lado conservador do Oeste do Michigan. “Vamos Fazer uma Festa” lê-se numa das T-shirts expostas no meio de roupas brilhantes e leggings por cinco dólares. Noutra, lê-se “Aviso: Tendência para a Asneira.” Um minuto depois, percebe-se claramente que esta loja não tem o que Kelsey procura, como aliás nenhuma das outras lojas, pelo menos as das redondezas.
“Acho que vou ter de te fazer uma T-shirt gay”, diz a sua amiga Kahri enquanto saem loja. “Ou talvez nem isso, sabes…”
“Sim.”

O que Kelsey Beckham realmente deseja é uma T-shirt que comunique o seu específico estado de espírito. Nada que indique homossexualidade ou orientação sexual, mas sim o género. Uma camisola que diga algo sobre quem a usa e que neste caso e para a maioria das pessoas não é nada que lhes seja familiar ou com o qual se sintam confortáveis: não é um ele, não é uma ela. Não é um ser masculino em transição para um feminino ou vice-versa. Antes, uma T-shirt que diga que Kelsey, com 18 anos, não se identifica com nenhum dos géneros.

A identidade de Kelsey é “não binária”. Ou “sem género”. É com isso que se sente confortável, apesar de saber que o mundo insiste de mil e uma maneiras que tem de se decidir. Como, por exemplo, fazer um perfil para o OkCupid, que as amigas insistem que faça neste site de encontros amorosos. Mas, mal Kelsey abriu a homepage, colocou-se-lhe imediatamente um problema: “Sou [homem/mulher].” Em qual dos quadradinhos devemos pôr uma cruzinha quando não pertencemos nem a um nem a outro? Como é que nos orientamos num mundo que nos exige a integração num ou noutro género, masculino ou feminino, mas onde nos sentimos bem não é em nenhum deles?

Poucos meses antes, alguém começou uma petição no site da Casa Branca apelando ao reconhecimento dos géneros não binários. Kelsey assinou a petição, foi a pessoa 22.711 a assinar no meio de 103 mil. No mês anterior, o Facebook começou a autorizar os utilizadores a personalizar o género nas suas definições e Kelsey fê-lo, seleccionando “sem género”, “não binário” e “transgénero” de uma lista de mais de 40 opções.

Têm-se discutido as questões de género, mas de uma forma abstracta, muito distante de onde Kelsey vive — onde grupos de estudo da Bíblia se encontram em cafés e uma mercearia anuncia filmes ao ar livre com desconto para quem for de tractor. Na sua escola, onde não existem sequer organizações gay, as pessoas especulam em surdina que Kelsey e Kahri devem namorar porque ambas têm o cabelo curto. Elas não namoram, mas como explicar “não binário” a uma escola onde uma das aulas inclui um capítulo sobre “gastos de género” e a professora diz a brincar que as raparigas têm de poupar para todos os sapatos que querem comprar?

Por enquanto, Kelsey navega nos limites do género usando um laço e leggings Forever 21, com lenços femininos e camisetas de alças desportivas que a fazem parecer ainda mais magra. A maior parte das pessoas aqui conhecem-na por “ela” e Kelsey responde a esse pronome, ainda que com irritação.

Estamos em meados de Maio e faltam poucos dias para terminar as aulas. O Verão virá e quando partir para a faculdade, neste Outono, não quer ser “ela”. Quer usar o pronome que lhe parece apropriado: they [que em inglês antigo também é usado para referir a terceira pessoa do singular de forma neutral, sem tradução para português]. They vai para a faculdade. They vai estudar engenharia. They vai arranjar trabalho. They vai encontrar um companheiro e construir um lar. They vai começar por encontrar uma T-shirt.
“Eu só quero uma coisa subtil, mas que faça as pessoas perceberem do que estou a falar”, diz Kelsey quando as amigas chegam ao café. “Quero uma coisa que torne claro que não sou uma rapariga.”
“Kelsey, ninguém aqui vai perceber o que estás a dizer”, diz Kahri. Kelsey ri e suspira. “Eu sei.”

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Kelsey com as amigas Kenzie Thompson e Kristen Shaffer, no Michigan's Adventure Park

“Cinto de segurança?” Nancy Beckham certifica-se que Kelsey apertou o cinto antes de se afastarem da casa de tijolo de dois andares onde Kelsey cresceu. Tenta ordenar os papéis que tem no colo, acabando por os entregar à filha mais nova.

Kelsey olha para a primeira folha e olha para cima, surpreendida. “Eu li”, responde Nancy. Kelsey mandou-lhe aquilo por email por isso Nancy leu-o e sublinhou-o. Agora trá-lo consigo para o referir durante a conversa que estão prestes a ter com a terapeuta de Kelsey. Hormonas: Um Guia.

Para Nancy, mãe de três filhos, 55 anos, a noção de ter um filho que quer ser neutral quanto ao género não tem sido fácil. Ela ouvira falar de pessoas que tinham nascido com corpo de mulher mas que se sentiam homens. Mas nunca tinha ouvido falar em alguém que não queria ser uma coisa nem outra, e mais do que uma vez perguntou-lhe: “Tens a certeza? Tens a certeza que se calhar não és apenas uma maria-rapaz?” Kelsey tinha a certeza.

Identificar-se como “sem género” não resultou de uma percepção imediata mas gradual, o reconhecimento de que aquilo que se aplicava às outras raparigas não se aplicava a si. Quando as pessoas diziam que era bonita, ela encolhia-se — não porque se achasse feia mas porque as definições das outras pessoas de bonito ou atraente não funcionavam. Vestidos e maquilhagem só a faziam achar-se mais feia, mas as roupas de rapaz também não lhe pareciam bem. Não se tratava de ser maria-rapaz. Não se tratava de um traço da personalidade. Não se tratava sequer das roupas, apesar de estas serem um sinal imediato do seu desconforto. Tratava-se de algo diferente e mais profundo.

Procurou na Internet formas de entender estes sentimentos, deparando-se com coisas sobre a identidade de género. Foi aí, em blogues com fotografias de indivíduos de corpos andróginos, que aprendeu o termo “não binário” e sentiu-se aliviada. Ali estavam pessoas que conheciam aquilo por que ela passou, que também o tinham vivido e que o nomeavam. Desenvolveram um léxico — em vez de “ele” e “ela” havia outras formas de escolher neutralidade: Ze. Xe. Ou. Ey. [algumas propostas feitas em português incluem substituir o “a” e o “o” por x, @ ou *, ou considerar correcto algo como “a rapaz”]. Kelsey gostou de they porque já existia no dicionário.

No ano passado, escreveu uma carta a Nancy, depois de uma saída para compras em que a mãe reparou que Kelsey cirandava pela zona de roupa de homem de todas as lojas onde foram. “Não quero ser uma rapariga que veste roupa de rapaz, nem quero ser uma rapariga que se apresenta como um rapaz”, escreveu Kelsey. “Só quero ser uma pessoa que seja reconhecida como uma pessoa. É com isso que me sinto mais à vontade. Sou só uma pessoa que veste roupa de pessoa, que gosta de se parecer com quem é e que os outros me vejam como eu me vejo.”

Na sua cabeça, o corpo que lhe pareceria o certo não é aquele que tem agora. Gostaria que os músculos fossem redistribuídos, menos nas coxas e mais no dorso. Uma voz mais grave, mas não demasiado — não ao ponto de soar como um homem. Neutra.

Assim, aqui vão a caminho de uma sessão de terapia para discutir a possibilidade de Kelsey começar a tomar uma pequena dose de hormonas.

“Não quero ser insensível”, diz Nancy, começando uma conversa que tiveram várias vezes. “Mas todos nós temos coisas diferentes do que gostaríamos que fossem. Quando nos olhamos ao espelho…”

Quando se olha ao espelho, conta-lhe a mãe, por vezes fica chocada por ver que se tornou uma mulher de meia-idade com mais 20 quilos do que gostaria. Em alguns momentos de esperança, pensa que perder peso tornaria a vida melhor. Noutros, percebe que peso é apenas peso — não é quem ela é, e acabar com o peso não traria automaticamente a felicidade. Por isso interroga-se: serão os desejos hormonais de Kelsey como o seu peso? Kelsey é jovem. E se quando for para a faculdade perceber que foram um erro?
“Não digo que resolvam tudo”, afirma. “Só estou a dizer…”
“Que serias mais feliz”, completa Nancy.

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Kelsey com a mãe, Nancy, num festival gay

Às vezes é-lhe difícil explicar à sua adolescente tudo aquilo que aprendeu sobre a imprevisibilidade da felicidade. A vida de Nancy não correu exactamente como ela esperava. Não esperava tornar-se uma jovem viúva, depois de o marido ter tido um cancro veloz e brutal e ter morrido, há quatro anos. Não previu que abandonaria a pós-graduação para tomar conta dele. Agora, depois de procurar explicações para a exploração de Kelsey sobre o seu género — seria uma manifestação de dor pela morte de Mark? Uma fase da adolescência? — Nancy está novamente a adaptar-se, a aceitar que a decisão da filha sobre a identidade de género é válida e que lhe cabe garantir que Kelsey pense na realidade do mundo em que vive.
“É confuso quando as pessoas não sabem de que género és”, tenta agora. “O que dirias se alguém te perguntasse?”
“Diria que não sou de nenhum. Ambos.” Kelsey lembra-lhe que um primo pequeno recentemente lhe perguntou se era rapaz ou rapariga. Kelsey perguntou-lhe o que é que ele achava e a criança encolheu os ombros, como se adivinhasse que não importava.
“Mas e se for uma pessoa mais velha a perguntar?”
“Não vão perguntar.”

Estacionaram num pequeno parque, onde havia uma placa a anunciar consultas de aconselhamento. Uma hora depois, voltam, com Nancy ao volante e Kelsey inclinada sobre o vidro da janela. Estão ambas exaustas. Na estrada principal, Nancy pergunta-lhe se quer falar mais.
“Já não tenho energia para este tema”, afirma.
“Mas eu estou a tentar compreender.”
“É que me faz sentir à parte da sociedade, quando tenho de estar sempre a falar sobre isto. Será que sou humana sequer?”, lança. “Quer dizer, eu sei que não sou normal.”
As mãos de Nancy gelam no volante, e ela abana rapidamente a cabeça. “Oh querida, tu não és anormal.”
“Eu continuo a ser exactamente a mesma pessoa.”
“Eu sei. Continuas a ser Kelsey, certo?”

Nancy tenta não chorar aqui na estrada, mas as lágrimas já estão prestes a cair à medida que passam por todas as igrejas e campos. “Isto é um grande processo”, diz ao fim de um bocado. Ela sabe que para Kelsey não parece, diz, mas todas estas conversas irão traduzir-se num avanço. Kelsey pede desculpa por parecer frustrada.
“Sinto-me mal por agir assim.”
“Tens fome? Vamos comer um gelado”, sugere Nancy, forçando um tom alegre.

Sugere um sítio mas Kelsey torce o nariz. As pessoas lá andam de calçõezinhos e parecem sempre mais interessadas em andar de um lado para o outro do que em servir os clientes.
“E o outro sítio?”, responde Nancy. “Sundae qualquer coisa?”
“Country Sundae.”
Nancy acena com a cabeça. “Gelado.”

Foi uma terapeuta, e não Nancy, a primeira pessoa com quem falou sobre o género. Tinha tido algumas sessões para lidar com a ansiedade e, no final de uma delas, a terapeuta perguntou se havia mais alguma coisa sobre a qual quisesse falar. Kelsey disse que havia mais uma coisa e no terreno confidencial da terapia disse a expressão “sem género” em voz alta.

A seguir foi Kahri e com Kahri foi fácil. Ela já sabia que Kelsey preferia roupas mais masculinas e sempre lhe disse para fazer o que lhe parecia melhor. Kelsey acabou por lhe explicar o que era o género não binário por sms e tudo o que Kahri lhe respondeu foi, recorda agora: “Faz sentido.”

Mas com as outras pessoas não foi assim tão fácil. Não ter género, aprendeu, significa por vezes ter de o esconder. Ninguém julgaria Kelsey por ser não binária se ninguém o soubesse reconhecer, e a maioria das pessoas do Michigan suburbano não sabia. Simplesmente não era uma conclusão que as pessoas tirassem. Kelsey era “desportiva” ou “artista”. A sua cabeleireira comentou alegremente que o estilo que ela pedia era “unissexo”, sem perceber que era exactamente isso que queria.

Kelsey ia ensaiando conversas sobre questões de género, pesando as reacções dos amigos. Durante uns tempos, interrogava-se se seria emocionalmente mais fácil ficar calada, mas tudo se resumiu a isto: queria ser “they”. Como é que isso poderia acontecer se mais ninguém sabia?

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Com a amiga Kristen Shaffer, empacota algumas coisas que terá no novo quarto no campus universitário

A pessoa a quem contou mais recentemente foi Kristen, uma amiga de infância. Kristen é religiosa, de uma família conservadora, mas ia acenando enquanto Kelsey defendia que os manuais escolares deviam definir o género de uma forma que não fosse binária.

“Quero fazer perguntas mas não quero dizer nada que seja ofensivo”, diz Kristen preocupada, a caminho de um almoço num dia de Junho. “Não vais dizer coisas ofensivas. Deves fazer perguntas! Se me ofenderes, eu corrijo-te calmamente.” Ser sem género, explica-lhe Kelsey, é como viver numa ilha separada do resto do mundo. Kelsey habituou-se a pensar nas pessoas em termos de quão perto elas estão de chegar a essa ilha.
“Kahri e Erick estão de guarda”, diz Kelsey. Esses são os amigos que estão mais perto de a compreender. “Tu e a minha mãe estão de barco a caminho.”
“Eu quero estar de guarda!”
“Estás perto, no teu kayak.”

Continuam à procura de um restaurante.

Muitas das conversas aqui parecem dar-se dentro de carros, não num sítio ou noutro, mas entre sítios. A terra é plana, as estradas são largas. A própria vida parece uma estação do caminho para a vida mais importante que está à espera numa universidade próxima, onde Kelsey estará em breve e onde a sua identidade de género não será um segredo. Entretanto, arrasta-se o Verão com o The Legend of Zelda na Nintendo, Parks and Recreation no Netflix, e uma centena de escolhas nervosas relacionadas com o género. Kelsey encomenda uma camisola de natação, que nada tem que ver com os fatos de banho tradicionais das raparigas, para ir a uma festa na piscina. Conhece a colega do dormitório da universidade numa rede social, uma miúda que parece fixe e que lhe diz que nunca ouviu falar em “não binário”, mas que dará o seu melhor para o compreender.

Pouco depois disso, Kelsey e Kahri voam até São Francisco para visitar o irmão mais velho de Kelsey. Atravessam a pé a Japantown e observam os leões marinhos numa doca. Pedem uns brownies numa pastelaria que vende bolos com formas atrevidas e compram recordações com arco-íris num bairro gay bastante conhecido. Uma tarde apanham o autocarro e um passageiro aponta para uma ligadura que Kahri tem no joelho. “O que aconteceu? foi ele quem fez isso?”, brincou. Ele. Não era o pronome que Kelsey andava à procura e soava um bocado esquisito. Mas aqui estava um estranho amigável que olhava directamente para Kelsey e via algo diferente. Que reconhecia que, quem quer que ela fosse, não era uma rapariga.

Foi bom.

“Acho que agora podia ir ao supermercado”, pensa Nancy em voz alta. A casa está limpa. O trabalho escolar, do programa em que ela se inscreveu no ano passado, está terminado. O cão já tem comida.

De manhãzinha, Kelsey enfiou um saco no carro e partiu para um programa vocacional de Verão, para se inscrever numas aulas e fazer exames de aferição de nível. O mais novo dos rapazes, que voltou para casa depois de se formar na faculdade, está fora com um amigo.

A cozinha está estranhamente silenciosa, com a televisão desligada e os electrodomésticos a zumbir baixinho. É assim que será daqui a um mês, supõe Nancy, quando a sua filha mais nova sair de casa. Senta-se à mesa para planear o dia.

O Verão passou depressa e com altos e baixos. Por vezes Kelsey passava dias sem sequer mencionar a questão do género. Mas de repente acontecia alguma coisa, como no outro dia, em que estavam ambas numa casa de banho pública. Kelsey olhou-se ao espelho, virou-se para Nancy e disse: “Mãe, sinto que não pareço eu.”

Nancy interrogou-se interiormente se iriam ter mais uma conversa sobre hormonas, mas não disse nada — tal como não perguntou se Kelsey está à espera que ela use o pronome “they”. Questiona-se se ao evocar estes assuntos não estará a encorajá-los, e começa a formar cenários na sua cabeça: e se Kelsey, que às vezes é envergonhada ao telefone, lhe pedir que marque uma consulta com o médico das hormonas? Se fosse outra coisa qualquer — um dentista ou optometrista —, ela fá-lo-ia certamente.

Nancy decidiu que se irá sentar ao lado de Kelsey enquanto ela faz a chamada, para dar apoio. Mas que não será ela a marcar o número. É suficiente? É um compromisso suficiente entre a aceitação e o encorajamento, entre a criança que ela ama e a cidade conservadora onde vive, onde os habitantes falam em voz baixa de pessoas que se divorciam e de assuntos gay?

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Em casa, Kelsey e a mãe falam sobre a mudança para a faculdade

Lá em cima, Nancy tem um armário com vestidos e saias. Na bolsa de maquilhagem tem bâtons que aplica cuidadosamente e que às vezes acha que são “demasiado cor-de-rosa”. Na Internet, tem o seu perfil no eHarmony, que nunca se lembra de ir ver mas onde claramente está identificada como uma mulher à procura de um homem. Nancy nunca quis que Kelsey fosse uma miúda coquette, que usasse maquilhagem e fosse líder de claques. Mas ainda assim tinha expectativas que tantas mães parecem ter em relação à filha. Como a de que, por exemplo, um dia ela teria um filho e Nancy iria com ela para a sala de partos.

Esse é o tipo de coisas que mães e filhas fazem. Kelsey sempre foi independente, menos emotiva do que os irmãos. Mas enquanto Nancy é calorosa e faladora, o protótipo da pessoa extrovertida, Kelsey é reservada e introspectiva. É por causa do género ou é dela? E se for só dela, isso é importante?

Às vezes, Kelsey e Nancy parecem tão próximas: há dias, quando Nancy se queixou de que o queixo lhe doía, Kelsey disse: “O meu também!” e apontou exactamente para o mesmo sítio.

Às vezes, Nancy lembra-se de um livro com nomes de bebés que tinha quando estava grávida, que mostrava a popularidade e a frequência com que eram usados em rapazes ou raparigas. “Kelsey” era, na altura, 75% mais feminino. Mas 25% era masculino.

Recentemente leu um artigo sobre uma família que tinha uma criança pequena transgénero, um rapaz que queria ser rapariga. Nancy pergunta-se se teria sido mais fácil se tivesse passado por tudo isto há anos, quando Kelsey era pequena. Acabou por concluir que não. “Acho que estou contente por ter tido a experiência de ter uma filha durante o tempo que tive”, afirma. Pensa um bocadinho. “Seja lá o que for que isso signifique.”

“Será que eu deveria mudar?”, lança Kelsey, apontando para os calções com ananases desenhados. Estão acima do joelho e são mais curtos do que qualquer coisa que ela use normalmente. “Estes são os calções mais gay que tenho.”

As amigas Kristen e Mackenzie cruzam os braços sobre os seus biquínis e avaliam. “Não”, decide finalmente Kristen. “Quanto mais pequenas as roupas, melhor para um primeiro date.”
“Não é um date”, diz Kelsey. É só um primeiro encontro.
“Mmm-hmm.”

É final de Agosto. As três amigas de infância vão passar um dos seus últimos dias de férias ao Michigan’s Adventure, um parque de diversões que tem piscinas com ondas e granizados. Kelsey vai para a faculdade dali a quatro dias; malas e cestos de roupa começam a invadir a entrada de casa.

Ainda a pingar de um mergulho, Kelsey puxa os calções com os ananases e a parte de cima do fato de banho, tentando decidir se este conjunto foi a melhor escolha ou não para um primeiro não date.

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Kelsey com a amiga Mackenzie Thompson num restaurante

Há algumas semanas, depois da orientação vocacional, cedeu à pressão dos amigos e fez um perfil no OkCupid. Foi com relutância que preencheu o quadrado “feminino”, mas tratou de usar as primeiras linhas da sua autodescrição para explicar:

“Sou não binário, sem género, e uso they como pronome. Estou aqui porque tenho esperança de ver que há pessoas queer que gostam de mim e que gostam de mim por mim.”

Quase imediatamente chegaram respostas, mais do que Kelsey tinha previsto, muitas de pessoas não lhe interessavam particularmente. Deixou-lhe um misto de excitação e ansiedade, sem querer magoar ninguém e questionando se fazia sentido sequer conhecer alguém tão perto do início da faculdade.

Foi então que Avalon escreveu. Avalon usava o pronome they, também jogava The Legend of Zelda, também estava em bandas de marchas. Avalon também ia ao Michigan’s Adventure na mesma tarde e perguntara se Kelsey se queria encontrar lá, pessoalmente, em frente a uma montanha-russa chamada Shivering Timbers.
“Que mais roupas levas?”, pergunta agora Mackenzie.
“Comprei aquela camisola”, responde Kelsey.
“Sim, aquela camisola!”

Kelsey pega na camisola com a cara de Albert Einstein. “A nova e melhorada amizade da Kelsey não nos quer conhecer”, diz Mackenzie dramaticamente.
“Não, queremos assim!”, insiste Kelsey, tentando explicar porque é que o primeiro encontro com Avalon tem de ser só entre ambas.
“É que somos muito esquisitas.”
“Vão andar na roda gigante?”, pergunta Kristen. “Vais ter um momento à Nicholas Sparks?”
“Que nojo.”

A Shivering Timbers é uma velha montanha-russa em que as pessoas andam duas a duas, ficando muito juntas nas curvas apertadas. Kelsey está de pé à entrada, depois decide sentar-se num banco próximo, depois põe-se novamente de pé.

Por detrás de uma banca de joalharia aparece uma figura esguia, pálida, de cabelo preto curto, com calções com flores mas umas botas de combate masculinas. Reconhecem-se, levantam ambas os dedos num movimento ondulado, param antes de falar, dão à outra a possibilidade de começar a conversa. É a primeira vez que Kelsey conhece ao vivo outra pessoa sem género, biologicamente rapariga.
“Oi!”, diz Avalon.
“Oi.”

Nancy ainda não sabe de Avalon, e Kelsey não vê razões para lhe contar. Só restam dois dias para começar as aulas e há semanas que eles estão planeados: Kelsey e Nancy partem de carro no sábado, param num festival LGBT de que Kelsey ouviu falar e depois vão para o dormitório no domingo de manhã.

Mas na sexta-feira Avalon envia uma mensagem com um convite de última hora para uma festa no sábado na sua terra natal. Kelsey decide perguntar à mãe se podem alterar o itinerário, propondo uma paragem para ir ter com Avalon. Surpreendida por Kelsey ter criado uma relação tão rapidamente com alguém, Nancy aceita — e no sábado à tarde, numa Hyundai apinhada de material escolar, estaciona num parque, observando Kelsey a desaparecer para uma tenda decorada com balões. Queria encontrar um café, mas não conhece muito bem a zona. Em vez disso fica à espera no carro, questionando-se sobre esta nova amizade de Kelsey. Não lhe perguntou se estava interessada em Avalon, nem se Avalon nasceu rapaz ou rapariga. E gostou quando as duas chegaram e Avalon sorriu e acenou de longe para ela.

“Ela parece simpática”, diz Nancy, quando Kelsey regressa ao carro uma hora mais tarde. Depois dá-se conta. “Ela? They? Tens alguma coisa contra o ‘ze’?” Nancy ficou a saber que algumas pessoas não binárias usam o “ze” que gramaticalmente lhe é mais fácil que o “they”. Ultimamente tem pensado muito em pronomes. Há dias, de noite, quando estavam na cozinha, conseguiu ter uma conversa que andava a evitar. “Kel, acho que tu nunca me pediste explicitamente para não usar o ‘ela’”, disse, enquanto Kelsey enchia um copo de água. “E eu acho que tu pedirias se isso fosse realmente importante.” Ficou à espera que Kelsey dissesse alguma coisa, que lhe desse um sinal de que importava o suficiente para ela mudar. “É realmente importante para ti?”, acabou por perguntar. Kelsey virou-lhe as costas, deixando a água a correr no lava-loiças e desejando que Nancy chegasse a essa conclusão sozinha. “Não sei”, respondeu.

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O primeiro date com Avalon, que conheceu através de um site de encontros amorosos

Agora, no carro, de regresso às estradas do interior, Nancy explica o que lhe incomoda em “they”. “Parece uma coisa tão impessoal”, afirma. Diz que “they” parece um substituto, para quando não se sabe nada de nada sobre a pessoa em questão. Olha a filha, com ar de quem está à procura das palavras certas. “Mas se conheces a pessoa então não é nada impessoal”, responde finalmente Kelsey.

Continuam a viagem e é já de noite quando chegam ao festival, num espaço de betão, com um palco, vendedores ambulantes e muitos casais do mesmo sexo. Atravessam a entrada e Nancy compra os bilhetes. Repara que Kelsey está com uma T-shirt nova, com uma faixa de riscas em lilás, branco e verde. É a bandeira do género não binário, afirma Kelsey. É a T-shirt que explica que Kelsey não é nem rapariga nem rapaz. Comprou-a online.

“Mão, podias comprar-me um laço com o arco-íris”, brinca. Nancy respira fundo ao dirigir-se lá para dentro. “Isso é querido. Será que os vendem?”

Na manhã seguinte, bem cedo, deixam o hotel e dirigem-se ao dormitório de Kelsey. A sua colega de quarto já chegou. Pede para ficar com o lado esquerdo do quarto, e para Kelsey está perfeito porque ficou de olho no lado direito.

Tudo aqui lhe traz esperança. Uma das fichas da universidade que teve de preencher tinha três opções de género e não duas: masculino, feminino, outro. “Outro” tinha um espaço vazio à frente. Kelsey escreveu “não binário”, conseguindo finalmente encaixar a sua identidade de género num quadrado oficial.

Agora, no dormitório, Kelsey e Nancy começam a desfazer as malas. Kelsey pede a ajuda com os lençóis. Coloca numa gaveta o guia ilustrado The Gender Book, que trouxe para ajudar a explicar as variações de género aos seus novos amigos.

E a seguir já não há mais nada para fazer, neste lugar onde Kelsey é apenas Kelsey, sem passado, sem género, sem ideias feitas. O quarto está praticamente organizado e, apesar de Kelsey não pedir à mãe que se vá embora, Nancy não quer atrapalhar.

“Fofinha, vens dar-me um abraço?”, diz Nancy esticando os braços.
“Sim.”
“Amo-te, querida.”

Kelsey aproxima-se. Ficam abraçadas durante muito tempo no quarto e depois à porta, com os outros estudantes a passar no corredor.

Nancy entra no carro, sai do campus, dirigindo-se à interestadual e pensando em voz alta. A colega de quarto de Kelsey parece simpática. Fica contente com isso. Espera que as pessoas gostem da sua filha de 18 anos. Espera que Kelsey faça este curso de Ciências, que teve uns problemas na candidatura. Espera que... Nancy olha para o espelho retrovisor, tentando mudar de faixa. “Acho que ela vai ficar bem”, tranquiliza-se. E quase imediatamente abana a cabeça, ouvindo o seu próprio erro. “Continuo a tratá-la por ela. Eu sei que faço isso.”

Faz pisca-pisca, seguindo as placas para casa. Quando lá chega, tem uma mensagem no telemóvel. Um pequeno vídeo de um quarto com malas, prateleiras organizadas e Kelsey, sorrindo, lá no meio.

Exclusivo PÚBLICO/Washington Post

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