Não, os animais não são pessoas

Os animais devem merecer a adequada proteção do Direito, o que é muito diferente de atribuição de direitos.

No passado dia 15 de maio, o jornal PÚBLICO deu à estampa um artigo de opinião (“Tertium genus: nem pessoa, nem coisa”, de Eduardo Castro Marques) onde, a propósito do Estatuto dos Animais recentemente aprovado pela Lei n.º 08/2017, de 3 de março, são proferidas algumas afirmações que não podem deixar de merecer reflexão.

Em primeiro lugar, deve começar por lembrar-se que, ao contrário do que sustenta o autor, esta temática do enquadramento jurídico dos animais está ainda longe de reunir consenso no mundo do Direito. Não se discute que a realidade social e a evolução civilizacional dos nossos dias tornou quase inevitável a afirmação da ideia de que os animais (ou melhor, alguns animais, o que constitui um paradoxo incontornável), se por um lado não podem ser olhados como “pessoas”, também são insuscetíveis de ser reconduzidos ao conceito jurídico de mera “coisa”.

Nesse sentido, a concessão de um “estatuto jurídico” traduz, genericamente, um esforço do legislador português para acompanhar a tendência já seguida noutros ordenamentos jurídicos europeus, de reconhecimento da natureza própria dos animais enquanto seres sensíveis, e merecedores como tal de enquadramento autónomo e de proteção jurídica.

Deixemos aqui de lado, no entanto, a questão da sensibilidade e inteligência emocional existente nalguns animais. São atributos conhecidos, pelo menos empiricamente, por todos os caçadores “sapiens” e ainda melhor desde o momento em que se iniciou o processo de domesticação de animais selvagens. Portanto, não é a descoberta de nenhuma nova qualidade dos animais que legitima a utilização da chamada “senciência” (a única coisa nova nisto tudo é mesmo o neologismo), em substituição da razão, que se associa à mudança do estatuto jurídico de alguns animais. São de ordem política e cultural, e não científica, os fatores dessa mudança. 

Do ponto de vista jurídico, o relevo agora concedido no plano da legislação civil aos animais não humanos, para além de ser já visível em diversa legislação setorial, a começar pela própria lei de bases de proteção dos animais (LPA), acompanha em certa medida a evolução da legislação penal, que desde a aprovação da Lei n.º 69/2014, de 29 de agosto, consagrou definitivamente a proteção do bem-estar animal, sancionando criminalmente determinados comportamentos que atentem contra esse bem-estar, embora essa proteção se limite, algo hipocritamente, aos animais de companhia.

Trata-se, obviamente, de uma tendência legislativa que densifica a carga penalizadora do nosso sistema jurídico, já carregado de lógicas punitivas (há quantos anos não se legisla em Portugal no sentido de criar novas liberdades?), mas que não deixa de representar uma clarificação política e legislativa que a nosso ver é de saudar, já que não deve merecer contestação em qualquer sociedade evoluída a ideia de que um animal é muito mais do que uma mera coisa, devendo, nesse sentido, merecer a adequada proteção do Direito, o que é muito diferente de atribuição de direitos. 

Note-se, porém, que essa desqualificação jurídica dos animais como meras coisas apenas se aplica aos ditos animais “socializados”, ou não selvagens, já que, na prática, apenas esses detinham essa qualidade, em virtude da diferenciação operada pelo artigo 1319.º do Código Civil, que relega a ocupação dos animais selvagens para regulação específica, que não sofreu qualquer alteração.

Prossigamos com as imprecisões do artigo em referência. Com efeito, o autor parece defender, algo timidamente, que a consagração legislativa de um estatuto para os animais abre a porta para uma personificação jurídica, total ou parcial, dos animais, traduzida na suscetibilidade de estes serem sujeitos de relações jurídicas e, consequentemente, de serem titulares de direitos, clamando, a esse propósito, por vitória numa suposta “guerra” civilizacional. Imaginamos Eduardo Castro Marques a sonhar já com um novo amanhã que canta, no qual pessoas e animais são exatamente a mesma coisa

Ora, entendamo-nos: em nenhum dos preceitos alterados ou introduzidos pela Lei n.º 08/2017 se descortina uma intenção de equiparação entre animais não humanos e humanos, tendo em vista a personificação jurídica dos primeiros.  

Porventura ciente dos riscos de um choque civilizacional que uma solução mais radical implicaria, o legislador optou antes — bem, em nosso entender — pela via moderada de reforço dos deveres do homem para com os animais, como se retira, paradigmaticamente, do aditamento do artigo 1305.º-A ao Código Civil. 

Nesse sentido, se é verdade que o regime agora instituído é mais "protecionista"? dos animais (repete-se, alguns animais), não é verdade que essa proteção jurídica se traduza na atribuição de “direitos" aos animais, como sustenta a dado passo o articulista. Com efeito, para além de não especificar que "direitos" são esses, tal afirmação não tem suporte legal, uma vez que em nenhum momento o legislador chega a esse ponto da atribuição de direitos a quem não confere, nem pode conferir, personalidade jurídica. 

De resto, esse argumento é, em sim mesmo, “copernicano”: o próprio autor reconhece que a alteração legislativa efetuada não equipara os animais às pessoas, considerando-os como um "tertium genus", mas sustenta, embora timidamente,?que eles devem ter direitos, sem precisar quais são, e sem explicar como e quem os exerceria. Porventura por saber que, a prosseguir com essa linha de raciocínio, desembocaria num beco sem saída, do ponto de vista da argumentação jurídica, e com o desmascaramento aos olhos dos cidadãos sobre as reais intenções dos animalistas radicais.

Na verdade, apenas nas linhas finais emerge a real intenção do artigo. A nova legislação não é tida como um ajustamento aos tempos que vivemos, mas como um mero passo para atingir outros fins. Nomeadamente atacar a tauromaquia na “liça mediática”. Ora, esse é um tema que nos faz sair do plano jurídico para o plano cultural. Será essa a intenção de Eduardo Castro Marques, mas não foi essa a decisão do legislador.

Toda a relação dos homens com os animais (e com a natureza em sentido mais vasto) é culturalmente orientada. Incluindo a relação jurídica. Seria, pois, um grande erro para as nossas sociedades democráticas e para a cultura humanista que sustenta todo o progresso civilizacional instituir como arbítrio jurídico o preconceito cultural. Não se pode aceitar que a perseguição a uma cultura passe de contrabando com medidas sensatas sobre as responsabilidades dos homens para com os animais. 

Os autores escrevem segundo as normas do novo Acordo Ortográfico

 

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