Não há ébola sem senão

Sou só eu ou o Ébola é uma doença maçadora? Nos anos 90, para apanhar o último grande vírus mortífero, uma pessoa tinha de ter relações sexuais ou drogar-se. Que são actividades agradáveis. Mas hoje, para alguém contrair o vírus da moda, é preciso que lhe cuspam em cima. Ora, dentro de uma prática sexual mais arrojada, o cuspo pode até ter o seu espaço sem que seja considerado repugnante. Pode, inclusive, ser encarado com folgança. Mas se suceder no quotidiano é só javardo. Não compensa uma virose.

Na sida, havia uma permuta com a diversão. Como um escaldão depois de um estupendo dia de praia. Uma espécie de senão que acompanhava a bela. Já o Ébola é redundância de senãos, um aborrecimento em cima de uma chatice. Não há um trade off que o faça valer a pena. Com o Ébola não há quid pro quo. Só quo quo.

“A Mónica cuspiu-me e ainda apanhei Ébola por cima” tem muito menos graça do que: “A Mónica participou comigo em actividade ribaldeira de alto gabarito e, acontece, contraí sida. Mas já ninguém me tira a ribaldaria com a Mónica!” Não estou a ver alguém a dizer: “Tenho Ébola, mas já ninguém me tira o perdigoto que a Mónica me mandou!”

Esta diferença na forma de contágio coloca-nos uma questão filosófica: que pecado é que os fanáticos religiosos vão dizer que é culpado por isto? Os zelotas censuram a falta de temperança e a luxúria, pois proporcionam prazer. Mas porque é que hão-de condenar a falta de critério na escolha de amizades que leva alguém a dar-se com um sopinha de massa que o enche de salpicos de saliva? Só proporciona face humedecida.

Arranjar um culpado para a sida era fácil: as prostitutas, os homossexuais e os toxicodependentes. É da natureza da religião dizer que o sexo e as substâncias estupefacientes ofendem a Deus, que castiga a sensualidade. Mas o que é que há a reprovar a quem lhe cospe em cima? “Vais penar com o Ébola porque tens um amigo com má colocação da posição da língua, que causa um sigmatismo cujo corolário é a expelição descontrolada de gotículas pela boca!” Mesmo para um fundamentalista, é capaz de ser demais.

Há passagens na Bíblia que condenam coitos de vária ordem, assim como a intoxicação, mas não se consegue encontrar, nem no Antigo nem no Novo Testamento, uma censura, ainda que implícita, ao contacto involuntário com cuspo alheio. Sodoma não foi destruída porque os seus habitantes eram escarradores impenitentes.

Pelo contrário, sabemos que Jesus curava aplicando o próprio cuspo nas mucosas dos enfermos. Segundo São Marcos, quando um surdo-mudo o procurou, “Jesus meteu-lhe os dedos nos ouvidos e fez saliva com que lhe tocou a língua” (Mc 7,33). O evangelista não revela se a primeira coisa que o ex-mudo diz é: “Ui! Acho que apanhei Ébola”, mas o procedimento de Cristo é justamente o tipo de conduta que as autoridades sanitárias proíbem.

Está a ser difícil apontar um comportamento humano que possamos culpar pelo Ébola. E hoje em dia é impossível acontecer alguma catástrofe sem que o Homem tenha alguma coisa que ver com isso.

Para já, o melhor é dizer que a culpa é do CO2. Ou então do glúten.     

Sugerir correcção
Comentar