Não deixar morrer

É a quantidade de vozes que importa, até mais do que dizem ou divergem. É preciso que não se calem, para que não contem com o nosso silêncio.

Toda a gente está a falar da tragédia de Pedrogão. Muitos se lembram da última vez que se falou da última tragédia. Exprimem-se indignação, revolta, angústia e desespero. Às forças da inércia, da preguiça, do statu quo, do deixa-andar que acaba por dar em deixa-arder, basta esperar que tudo passe. Até acontecer outra tragédia e começar tudo outra vez.

Como se pode impedir este sistema cómodo e assassino de sobreviver? As forças do deixa-arder, para disfarçar, erguem-se a protestar também, para não destoar. As forças do deixa-arder tudo fazem para deixar desabafar quem quiser. É desabafando que eventualmente perderemos o fôlego. Depois do desabafo - contam esses poderes instalados - virão o cansaço, o abatimento, a desistência e a aparência externa, politicamente crucial, de indiferença e esquecimento.

Malfeitores são também os que não fazem nada ou só fazem o mínimo para parecer que respondem aos protestos. Malfeitores são também os que, no momento da tragédia, prometem fazer o que ainda não fizeram. Esses são os primeiros a esquecer as promessas. Só se lembram delas para voltar a fazê-las: as mesmas promessas com que nos calaram da última vez.

Como se há-de manter este saudável sobressalto em que tantas vozes discordantes se levantam? Como se há-de manter esta heróica teimosia em repetir o que já se gritou tantas vezes em vão?

É a quantidade de vozes que importa, até mais do que dizem ou divergem. É preciso que não se calem, para que não contem com o nosso silêncio.

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