Mudar fraldas ou mudar o mundo?

Pedimos aos pais a perfeição e eles passam essa pressão para os filhos, num sem número de solicitações nunca totalmente satisfeitas onde não existe tempo, nem cabeça, para pensar o mundo onde vivemos.

Vivemos numa sociedade obcecada por crianças, como se ter filhos constituísse uma garantia de felicidade, de desenvolvimento pessoal ou de estatuto social. Em resumo foi isto que a escritora e psiquiatra francesa Corinne Maier afirmou num depoimento à BBC, causando controvérsia, embora apenas reiterando o que já havia manifestado em 2009 no livro de sucesso 40 Razões Para Não Ter Filhos.

Uma dessas 40 razões é que o planeta já tem pessoas a mais, pelo que o excesso de população trará problemas ambientais acrescidos. Mas não é por aí, até porque existe quem alegue que precisamos de mais bebés. A população está a envelhecer e a população em idade de trabalho vai diminuir colocando em causa o equilíbrio do edifício social. No Japão já estão até a criar “bebés robôs” para aumentar a taxa de natalidade.

É no quadro comportamental que estou com ela. Existe hoje uma pressão para a perfeição, na relação com as crianças, que produz efeitos perversos. Nada de confusões. Ter filhos é óptimo – Corinne tem dois. Vê-los crescer também. Não é essa a questão. O que está em causa é que a noção de equilíbrio foi-se. Hoje tudo o que gira em torno de crianças é idealizado, ampliado, engrandecido. E quem contraria o senso comum de que o “melhor do mundo são as crianças”, “os meus filhos são o que de mais importante existe na minha vida”, ou “não há nada como o sorriso de uma criança”, é arrumado com olhar reprovador. E no caso de não ter filhos a censura é ainda maior. É visto como alguém que não encontrou ainda sentido para a sua existência.

A infância é uma construção relativamente recente. Há um século a morte de um idoso era vivida como irreparável. Constituíam um património seguro. Hoje a morte das crianças choca-nos mais apesar de serem uma página em branco. É como se encarnassem o que gostaríamos de ser. São como os finais felizes dos filmes. Um momento de alívio. Aconchega-nos imaginar que, apesar de tudo, ainda algo pode estar próximo da nossa ideia de perfeição neste mundo. Enchemos os seus quartos de coisas fofas, afastamo-las dos desconfortos e dúvidas, projectamos para elas a caricatura do amparo que desejamos para nós.

Sentirmo-nos realizados enquanto pais é óptimo. O problema é a compulsão de termos de o ser. A procura de um ideal de plenitude através delas. A imposição social para sermos supermães e superpais. Os cuidados extremos, a correria das actividades extracurriculares, a ajuda nos trabalhos de casa. Resultado? Superprotecção ou até controle, com resultados nefastos no crescimento delas. Partilho o fascínio pelos olhos arregalados, as bochechinhas e até pela mudança de fraldas. O problema é quando queremos tanto cuidar que criamos situações para que a nossa protecção seja necessária. Nessa altura tornamo-nos dependentes dos filhos. Não é bom para nós. E menos ainda para eles.

Na forma como hoje nos auto-encenamos perante os outros nas redes sociais, salta à vista que para muitas mães e pais é como se só pudessem existir a partir dos filhos, quando a liberdade nos afectos é amar o outro, neste caso os filhos, mas não nos confundirmos neles ou através deles. Vivemos num contexto social em que passamos o tempo a dizer que os filhos têm cada vez mais dificuldade em separar-se dos pais, fazendo-o cada vez mais tardiamente, muitas vezes por questões materiais. Mas o contrário também parece ser verdade. Parece haver cada vez mais pais com dificuldade em separar-se dos filhos, autonomizando-se deles, e a si próprios, para melhor amarem, de tal forma criaram ao longo dos anos uma relação de dependência com eles. 

Há uma tensão que começa antes do nascimento, com os sacrifícios, as abstinências, as listas do que é suposto ou não fazer e continua depois com os cuidados exagerados, a alimentação, a profusão de riscos e o arsenal de especialistas que tem sempre qualquer coisa de essencial a dizer – pedopsiquiatras, nutricionistas, cientistas, a vizinha do lado que está com os filhos em casa e critica as mães que não abdicam da carreira ou a avó, para quem no seu tempo é que era em termos de boas práticas e provavelmente terá alguma razão. Toda a gente tem opiniões.

O grande beneficiário desta obsessão parece ser o mercado que precisa que consumamos, mesmo quando não precisamos, e existe lá apelo mais implacável do que as crianças. Em nome delas compramos um carro maior (quem pode, claro), procura-se a creche com mais estatuto no círculo de sociabilidades ou enche-se o quarto de brinquedos supérfluos. Mas antes adquirem-se os muitos manuais, cada um com a sua narrativa, que nos vão ensinar a ser os melhores pais do mundo – por sorte, entre os que me ofereceram, havia um que satirizava esta cultura e que ajuda a relativizar tudo – The Madness Of Modern Parenting (2014) da colunista do The Guardian, Zoe Williams.

Tudo isto significa dinheiro. Muito dinheiro. Seguindo o seu rasto percebe-se que existe sempre, algures, alguém, a lucrar com o desejo nunca satisfeito. O desejo pelo desejo. Há uma autêntica indústria para bebés, feita de equipamentos, transportes, segurança, alimentação, recreações e mobília, que agradece. Não há nada mais amigo do consumo do que a tensão, a ansiedade e o sentimento de culpa. O que os pais julgam não conseguir providenciar, o mercado fornece. O seu bebé não adormece? Não se preocupe. O mercado tem a solução para si. 

Segundo dados do INE de 2016 as famílias portuguesas com crianças gastam em média mais de 658 euros por mês do que as famílias sem crianças a seu cargo. Não admira que muitos fiquem indecisos entre ter ou não filhos. Antes de mudar fraldas talvez tenhamos que mudar o mundo, resistindo às pressões à volta, tendo uma relação mais distendida com esta mercantilização da infância. Não é fácil. Pedimos aos pais a perfeição e eles passam essa pressão para os filhos, num sem número de solicitações nunca totalmente satisfeitas onde não existe tempo, nem cabeça, para pensar o mundo onde vivemos. O que dá que pensar sobre a sociedade que vamos deixar aos nossos filhos.

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