Mortes nos Comandos em 1988: “Ninguém adivinhou mas podíamos ter adivinhado”

Manuel Morais foi auxiliar de instrução no curso 89 no qual morreram dois instruendos de 20 anos. "Um bom instrutor ensina-nos a darmos o melhor de nós para não morrermos", diz.

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Miguel Manso
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Manuel Morais está na primeira fila do lado direito. DR

O lema dos Comandos, tirado da Eneida de Virgílio, diz que "a sorte protege os audazes". Naquele dia 14 de Abril de 1988, nada protegeu Joaquim Bastos e Luís Barata. Estavam entre os melhores instruendos do curso 89 que tinha começado em Fevereiro e faziam parte do primeiro grupo de graduados. Várias vezes, ao longo dos dois meses da instrução em que deram provas de bom desempenho e dedicação, terão ouvido "o grito de guerra" dos Comandos – "aqui estamos, prontos para o sacrifício".

Os dois jovens morreram numa das provas mais duras da instrução dos Comandos no Campo Militar de Santa Margarida – a Prova de Choque, que passou a chamar-se Prova Zero.

“Ninguém adivinhou, mas podíamos ter adivinhado”, diz Manuel Morais, que estava lá, não enquanto recruta, como fora num dos cursos de 1986, mas como auxiliar de instrução. Advinhar como? Prevenir em vez de reagir? “Pois, não sei. É tão difícil.” Manuel Morais tinha então pouco mais de 20 anos. Era 1.º cabo, o “elo mais fraco” da equipa da instrução, composta, para cada grupo, por um oficial, um sargento e um praça. Os seus homens, como diz, eram do segundo grupo de graduados.

Ainda sente “mágoa e tristeza” pela perda dos jovens de quem esteve perto. Ambos tinham 20 anos, como Hugo Abreu e Dylan da Silva, que morreram, por desidratação extrema e falência dos orgãos, no curso 127 em Setembro do ano passado.

Se podia ter feito alguma coisa de diferente? “Tenho consciência de que fiz o melhor, em todas as circunstâncias”, garante. “Para nós, instrutores, foi um período terrível. Suponho que aí não há gente boa, ou gente má, há gente. Até ali somos uns durões, mas depois somos seres humanos também. Custou-me imenso. Já lá vão quase 30 anos e ainda me custa.”

Desmentidos do Exército

Nesse dia em que faleceram Joaquim Bastos (de Celorico de Basto) e Luís Grilo Barata (de Alcains), outros três instruendos estiveram internados no Hospital de Abrantes. Mas eram “muitos mais” os que receberam assistência na tenda de campanha, lembra Manuel Morais.

Não acredita que houve excessos mas sim que os dois recrutas morreram por exaustão. Foi essa a conclusão oficial do Exército que desmentiu informações chegadas informalmente à família de Joaquim Bastos de que pelo menos ele teria sofrido agressões e ameaças. 

O general Fausto Marques, responsável pelo inquérito ordenado pelo Estado-Maior do Exército, atribuiu as responsabilidades aos próprios recrutas falecidos pelo “excesso de generosidade” – uma expressão que ainda hoje choca a família de Joaquim Bastos.

“Não tem que ser entendido pelas famílias, mas é verdade que nós, militares, estamos dispostos a chegar a esse limite e a dar o melhor de nós”, justifica Manuel Morais que fala antes em “limite da generosidade”.  

Admite que haja alguns excessos de instrutores que "ultrapassem as regras e não cumpram o estipulado" com os instruendos sem espírito para estar ali, mas lembra que “qualquer tipo de agressão é proibido”.

Para ele, de qualquer modo, “não faz sentido nenhum isso ter acontecido neste caso, tendo em conta o tipo de instruendos que eram” Bastos e Barata, "sempre prontos a dar o melhor que tinham”.

E lembra-se de ver instrutores a tentarem tirar Luís Barata da marcha enquanto este, muito debilitado e meio inconsciente, insistia em ficar, movimentando-se como que “em câmara lenta”. Horas depois, falecia no Hospital de Abrantes.

Manuel Morais acredita que não houve uma causa directa entre os instrutores e as mortes. “Poderia ter acontecido em qualquer grupo, poderia ter acontecido com qualquer instrutor, a falência dos órgãos de um indivíduo depois de sujeito a uma pressão grande, a uma austeridade grande, às agruras do próprio curso” – acredita que foi o que aconteceu.

Retratados como assassinos

“As culpas foram um pouco dissolvidas por todos. No fundo tivemos, até hoje, que nos aguentar com esse sentimento. Víamo-nos retratados pela comunicação social como assassinos. Era um sentimento de revolta, ao mesmo tempo um sentimento de tristeza, uma mescla de muitas coisas. Sobretudo para nós que estávamos lá como instrutores.” Não foi posto em causa nenhum instrutor. “O que foi posto em causa foi o sistema”, salienta.

Manuel Morais diz que um bom instrutor é aquele que prepara um militar “para dar o seu melhor não para morrer, mas para não morrer”. Ou seja: “Para prestar um serviço extraordinário mas preservando a vida.” Mas isso, num contexto em que “os desafios do curso de Comandos são desafios muito graves”. Como ex-instruendo, acrescenta: “Temos sempre a percepção de que nunca a morte está fora do nosso universo.”

A mensagem “Prepara-te porque podes morrer”, difundida por altifalantes, era uma forma de chamar os instruendos para a Prova Individual do Combatente (PIC). Nela, todos aguardavam um a um no cume de um monte antes de se lançarem num percurso com obstáculos. “Cada um desses obstáculos é uma prova”, explica. Numa delas “passávamos debaixo de fogo real [disparos e explosões]”. Outra – o salto no desconhecido – era uma das provas decisivas. Quem não se atirasse para o vazio, seria imediatamente eliminado do curso.

“No geral, a PIC era uma prova em que criavam stress à nossa volta, com ambulâncias de um lado para o outro para termos consciência” de um contexto de perigo. Depois, enquanto auxiliar de instrução, percebeu que esse stress provocado fazia parte da “acção psicológica” do treino.

“Não há cursos de Comandos fáceis. É normal as pessoas chegarem ao limite, caírem de cansaço, desmaiarem por não  conseguirem ultrapassar algumas barreiras. O que é anormal é o indivíduo aguentar a cada momento, a cada dia que passa, a cada noite, a cada instrução”, diz enquanto comando e ex-instrutor.

Chamado pelo comandante

Manuel Morais não é pessoa para se afeiçoar a métodos dos quais discorde. Seja nos Comandos, seja agora na PSP, onde está desde 1990 e onde é hoje agente principal do Corpo de Intervenção da Unidade Especial de Polícia.

“Por vezes entrava em conflito com alguns instrutores, que entendiam que a instrução devia ser sempre pior para os outros do que foi para eles. Os meus princípios nunca foram esses”, diz.

Recorda-se de, a dada altura, o comandante do destacamento de Comandos em Santa Margarida, onde se realizava então a formação, lhe chamar a atenção pela forma como tratava os seus instruendos. "O comandante dizia-me: 'Olhe que eles vão ser oficiais, e depois não vão respeitá-lo'", recorda Morais. "A verdade é que ainda hoje alguns são oficiais, até superiores, alguns na GNR, têm-me respeito, como me tinham na altura. Não foi preciso humilhá-los."

Não foi chamado mais nenhuma vez pelo comandante. "Tenho muito orgulho de ter feito as coisas à minha maneira e de ter a percepção de que resultaram na mesma. Eu tratava as pessoas com dureza, dando o melhor da minha técnica, mas com muito humanismo e muito respeito”, diz.

"Aquelas coisas que eu achava que não podiam ser daquela forma nunca as fiz enquanto instrutor. Nunca tive esse tipo de procedimento, por exemplo, de humilhar os instruendos. Achei sempre que há métodos diferentes para atingir o limite da generosidade das pessoas", continua. E acrescenta: "Nunca era preciso humilhar. A humilhação apenas serve para criar ódios e raivas."

O Exército rejeitou na altura a hipótese de agressão, avançando como causas das mortes de Joaquim Bastos e Luís Barata a desidratação, insolação e exaustão. 

Num documento, que resultou de um processo de averiguações interno – semelhante ao que foi aberto para averiguar as mortes de Hugo Abreu e Dylan da Silva no ano passado – não são atribuídas responsabilidades a nenhum instrutor, comandante ou oficial superior do Exército.

Mudanças polémicas

Mas são avançadas recomendações e decisões que na altura causaram polémica por imporem grandes mudanças interpretadas por alguns sectores militares como uma cedência à sociedade civil chocada com as mortes, lê-se nos jornais publicados na altura.

Entre essas decisões e mudanças: o Centro de Instrução de Comandos de Santa Margarida é extinto e a instrução passa a  ter base no Regimento de Comandos na Amadora, antes de passar para a Carregueira; e a participação nas forças dos Comandos de elementos a cumprir o serviço militar obrigatório deixa de ser obrigatória e passa a ser apenas voluntária. Nesse mesmo ano, um terceiro jovem morre, afogado durante um exercício. Em 1993, o curso é extinto e retomado em 2002.

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