Medicina deve ser considerada "profissão de alto risco e desgaste rápido"

Miguel Guimarães. O bastonário dos médicos recusa que estes sejam uns privilegiados. É uma ideia "das mais erradas que se podem ter". Defende que não ganham o suficiente. E que a partir de certa idade deviam até ter direito a um regime especial. Sobre o ministro, diz que "não está a ser sério".

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Paulo Pimenta

Cinco meses depois de ter tomado posse como bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães diz que o ministro da Saúde “não está a ser sério” e que é natural que a Ordem volte a apoiar uma nova greve. O bastonário defende que a Medicina deve ser considerada uma profissão de alto risco e de desgaste rápido. O que poderia implicar uma reforma mais precoce ou trabalhar menos horas, a partir de determinada idade. “As pessoas têm a ideia de que os médicos são super-homens e não são”, justifica.

Os dois sindicatos que representam os médicos [e que se vão reunir com o Governo nesta sexta-feira] admitem avançar para uma nova greve, depois da que fizeram em Maio. A Ordem vai apoiar?
Essa questão vai ter que ser colocada ao Conselho Nacional da Ordem e é natural que a Ordem venha a apoiar os médicos que façam greve. Além desse eventual apoio, vou fazer de novo um apelo: os médicos têm a obrigação de dizer o que vai mal no SNS [Serviço Nacional de Saúde]. Temos sinalizado várias deficiências graves, todas as semanas há problemas que tento resolver internamente, mas é preciso dizer às pessoas o que se está a passar.     

O que pensa da contraproposta enviada pelo Governo aos sindicatos esta semana e que os dirigentes sindicais já consideraram “ultrajante”?
O ministro da Saúde não está a ser sério. Temos que ter memória. Em Março, ele disse na Assembleia da República que estava a pensar aumentar em alguns meses a idade de dispensa dos médicos nas urgências. Na altura, alegou que tinha sido falado com o anterior bastonário, que negou. O ministro explicou então que isto não era uma proposta. Afinal, é mesmo uma proposta, que é ofensiva para os médicos. Numa altura em que os médicos são brutalmente explorados e pressionados pelas administrações hospitalares ou pelas direcções dos ACES [agrupamentos de centros de saúde], em que a responsabilidade não pára de aumentar, dizer que podem trabalhar na urgência em idades mais avançadas é uma proposta inaceitável.

Mas porquê? Deixar de fazer urgências aos 55 anos não é demasiado cedo?
Não há nenhuma profissão que tenha uma actividade tão complexa como esta. As pessoas não imaginam o que é trabalhar numa urgência. Trabalhar numa urgência é ter 10 a 15 pessoas à porta, para serem atendidas, a mandarem bocas, às vezes a insultarem.

Para as pessoas em geral os médicos são uns privilegiados...
Essa é uma das ideias mais erradas que se podem ter, é uma imagem do passado.

Porque é que acha então que tantos pais querem que os seus filhos sejam médicos?
Porque pensam que é uma profissão com prestígio. É mais por causa disso do que por aquilo que se ganha. Não quer dizer que não haja médicos que não ganhem bem, mas isso é porque fazem muitas horas extra, o que implica um esforço brutal, ou porque trabalham no privado, ou porque dominam uma técnica especial.

Ainda esta semana foi divulgada uma lista de salários, no Correio da Manhã, que mostrava que havia um médico num centro hospitalar a ganhar 24 mil euros por mês...
São casos absolutamente excepcionais. A remuneração-base não corresponde minimamente à responsabilidade que os médicos têm. As tabelas salariais no SNS são públicas. Claro que muitos médicos fazem, para além do horário normal, urgências, trabalham noite e dia, portanto ganham mais dinheiro.

O Governo alega no documento negocial que apresentou aos sindicatos que nos dois últimos anos as remunerações aumentaram entre 15% a 20%...
Isso não é verdade. Primeiro, os médicos, tal como a maioria dos portugueses, foram “roubados”. Estes supostos aumentos correspondem apenas a uma reposição parcial do valor do trabalho. Os médicos estão a aproximar-se outra vez dos valores que ganhavam no passado. O Governo continua, aliás, a acumular uma dívida de milhões de euros aos médicos, porque tem congelada a progressão na carreira. Sinto-me ofendido com este documento. O Governo está a ir pelo pior caminho possível. Está a tentar manipular números em vez de falar verdade.

Qual seria remuneração justa de um médico? O ex-ministro Correia de Campos chegou a  dizer que deveriam ganhar tanto como os magistrados.
Esses valores devem ser calculados de acordo com o nível de responsabilidade. E isso avalia-se pelas indemnizações que os profissionais pagam. Hoje, há indemnizações [por erro e complicações clínicas] de 150, 200, 300 mil euros. Quando Correia de Campos disse que devia ser semelhante à dos magistrados eu diria que estou de acordo, mas acrescentaria: no mínimo. O que é que acontece a um juiz que tomou uma má decisão? Não paga nada. A profissão de médico devia mesmo ser considerada uma profissão de alto risco e desgaste rápido, como já acontece noutros países da Europa.

Isso significaria o quê? Que os médicos se poderiam reformar mais cedo, como por exemplo os mineiros?
Não necessariamente. Pode ser uma reforma mais precoce, ou incentivos especiais, ou, a partir de determinada idade, trabalhar menos horas. As pessoas têm a ideia de que os médicos são super-homens e não são. A esperança média de vida dos médicos é menor do que a da média da população em sete ou oito anos. Os médicos trabalham muitas horas, alimentam-se mal, não têm uma vida muito saudável.

Mas dessa forma a carência de médicos no SNS ainda se agravaria mais.
Faltam cerca de 4 mil médicos no SNS. Mas, em Portugal, temos um número de médicos mais do que suficiente e formamos até em excesso.  

Se os sindicatos convocarem uma nova greve, isso será inédito (duas greves num ano, já fizeram em Maio). A situação atingiu um limite?
As pessoas não têm ideia de como está o SNS. De acordo com comunicação social, na última reunião do Conselho de Estado, o ex-Presidente Jorge Sampaio apontou o dedo aos salários baixos dos profissionais e disse que há pessoas a trabalhar no limite das suas capacidades. O SNS foi acumulando deficiências que nunca foram cobertas. As necessidades em saúde foram aumentando, até porque a população foi envelhecendo. Mas o número de profissionais de saúde é cada vez mais baixo no SNS. Aliás, os portugueses recorrem cada vez à medicina privada. Os últimos estudos provam que cerca de 40% recorrem ao privado. Se, de repente, todos os portugueses decidissem ir ao sector público, o SNS não tinha capacidade de resposta.

Temos 17.900 especialistas e 10 mil médicos internos, segundo os dados da ACSS (Administração Central do Sistema de Saúde). E os internos estão a ser cada vez mais utilizados para exercerem tarefas de especialistas. O Algarve, por exemplo, está um verdadeiro caos: estão a ser escalados muito médicos internos do primeiro e do segundo ano para fazer urgências.

Tem alegado que os médicos estão no limite...
Segundo um estudo recente, 66% dos médicos têm pelo menos um dos três principais indicadores de burnout [síndrome de esgotamento profissional]. Nós fizemos esse levantamento mas temos que os identificar agora. A forma de contrariar este problema passa por criar condições para que as pessoas consigam trabalhar com menos pressão.

Prometeu que ia definir tempos mínimos para as consultas. Isso já está definido?
Os colégios de especialidade estão a fazer esse trabalho. Todos os portugueses percebem que a consulta não pode durar cinco ou sete minutos, esse é quase o tempo que o doente precisa para dizer o seu nome, a sua profissão, o que sente. Se os médicos forem pressionados para verem muitos doentes, isso aumenta a probabilidade de erro e o stress. Este aumento de pressão não é bom para os médicos e não é bom para os doentes.

Quando acha que vai ter esses tempos mínimos definidos?
Em Outubro. Há especialidades que precisam de mais tempo, como a Psiquiatria e a Medicina Interna, por exemplo. Neste momento as marcações [de consultas] estão em roda livre. Tive queixas, ainda como presidente do Conselho Regional do Norte da Ordem, de psiquiatras que, em alguns hospitais privados, tinham marcações de doentes de 20 em 20 minutos, contra a vontade deles.

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