A Madeira já começou a reconstrução, sem saber ainda quem pagará a conta

Duas semanas após a vaga de incêndios, a ilha olha para o futuro. Estradas foram reabertas, algumas habitações começaram a ser recuperadas e fala-se já em reflorestação e limpeza.

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Os prejuízos e apoios à região serão hoje finalmente quantificados numa reunião com o Governo no Funchal Gregório Cunha
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Gregório Cunha

Arlete hesita em sair do carro. Olha para a rua que desce inclinada, quase a pique. Suspira. “Não sei se quero ir.” O marido responde que sim. Que não faz mal que fique no carro. Mas que é preciso enterrar aquela memória e seguir em frente. Arlete suspira outra vez. Agora mais fundo, à medida que vai varrendo com os olhos aquela zona de São Roque onde viveu mais de 40 anos. É terra queimada, agora.

Meia hora antes, lá em baixo, sentada numa esplanada no centro da cidade, junto ao apartamento que o governo madeirense providenciou para realojá-los provisoriamente, Arlete confessa que ainda não regressou à casa destruída pelos incêndios, que durante quase uma semana varreram a capital madeirense. Só vai agora, quase duas semanas depois, para “olhar pelo marido”. Tem medo que ele se sinta mal. Carlos não se sente. Arlete também aguenta. Ela, que naquele início de tarde, quando as chamas desceram pela montanha, e já lambiam as traseiras da casa, foi tão forte, é forte novamente.

Carlos e Arlete Silva, como tantos outros – e foram tantos os que ficaram sem casa naquela semana – aprenderam que o fogo é um bicho caprichoso. Uma espécie de criança mimada, que quer porque quer um brinquedo, e ignora os outros à volta. Foi assim em tantos lugares no Funchal e na Calheta, os dois concelhos mais afectados. Aconteceu assim na entrada n.º 32 do Caminho Novo do Galeão.

À volta da casa pintada de negro de Carlos e Arlete, à qual as labaredas arrancaram portas, janelas e telhado, parece que nada aconteceu. O quotidiano espreguiça-se em cada casa. Ouvem-se risos do interior de um quintal. De uma outra casa chega o som de uma missa rezada pela rádio. Em frente, um vizinho do casal, rega pacientemente os vasos de plantas, enquanto o cão, acorrentado à varanda, ladra para os forasteiros que sobem pelo beco estreito. É Carlos que vai à frente. É ele que entra primeiro no quintal.

“A casa era antiga, mas estava toda arranjadinha. Tínhamos tapado a parte da frente do quintal”, recorda Arlete, desenhando com uma mão as paredes que já não existem. Já descrevera a casa antes mesmo de lá chegar. Enquanto o carro subia a rua ingreme, que é feita num só sentido, mas que naquela tarde foi ponto de fuga para muitos, Arlete falava da máquina de lavar roupa comprada há duas semanas. Do computador, das roupas, das recordações. “Tudo ardeu”, diz, baixinho, como se quisesse convencer que aquela vida já não existe.

Existe outra, ainda cheia de incógnitas, mas que, passado o susto, começa lentamente a ser vivida. A deste casal, passa agora por um T2 arrendado provisoriamente pelo governo no centro do Funchal. É um prédio recente. Espaçoso. Parece ainda maior, despido que está de memórias. Não há fotografias nos móveis, nem nas paredes. As que existem, estão guardadas no tablet que Arlete conseguiu salvar das chamas.

Apagadas as chamas. Feitos os rescaldos. O saldo é devastador. Perto de metade do parque ecológico da cidade ardeu. Três pessoas morreram. Uma ficou ferida com gravidade e continua em Lisboa, no Hospital Santa Maria, centenas foram assistidas nas urgências hospitalares com dificuldades respiratórias provocadas pela inalação de fumo. O edificado da cidade também sofreu, e muito. Nas contas do executivo madeirense 153 habitações foram destruídas e mais 74 foram severamente danificadas. No total, conta ao PÚBLICO a secretária regional dos Assuntos Sociais, Rubina Leal, 69 famílias ficaram sem tecto. Mais de duzentas pessoas.

Reforço do Fundo de Socorro Social

“O processo de realojamento provisório prossegue e, neste âmbito, continuamos a efectuar consultas ao mercado de arrendamento com o objetivo de arrendar imóveis”, explica Rubina Leal, acrescentando que uma vintena de habitações que ficaram parcialmente danificadas estão já em recuperação. “Já foi solicitado o reforço do Fundo de Socorro Social para dar continuidade à reconstrução de habitações parcialmente danificadas”, adianta, dizendo que algumas, ou por não estarem licenciadas ou ficarem em zonas de risco, não serão recuperadas.

A prioridade do pós-incêndio foi sempre para as famílias. E todas, tal como Carlos e Arlete, já foram realojadas provisoriamente, ou pelo governo ou em casa de familiares. Foram aceleradas burocracias, esquecidos alguns procedimentos, para que o RG3, aquele quartel do Exército que já tinha sido refúgio para os desalojados em Fevereiro de 2010, quando a cidade foi atingida por uma aluvião, voltasse rapidamente à normalidade. E já voltou.

A meio desta semana, no mesmo pátio, onde crianças jogavam à bola, e adultos deambulavam de olhar perdido, jurou-se a bandeira. Mais uma oportunidade para homenagear os militares, incansáveis durante e depois dos incêndios. À família dos novos recrutas, juntaram-se muitos moradores. “Foram incansáveis. Todos”, recorda Arlete, falando também dos voluntários da Cruz Vermelha, da equipa da junta de freguesia. “Todos.”

Elogios que Carlos amplia. “Naqueles momentos, não nos faltou nada. Sempre que nos viam cabisbaixos, vinha sempre alguém falar connosco”, conta o homem que sorri perante a solidariedade dos amigos. “O telefone não pára de tocar. Querem saber como estamos, se precisamos de alguma coisa”, garante. Um telefone que foi também oferecido por um amigo, já que o outro foi com a casa. Como o colchão ortopédico onde dormem. A roupa que vestem.

Um milhão de euros para ajudar

E foram muitos que necessitaram, tal como foram muitos os que ajudaram. Hotéis icónicos com o Reid’s Palace, puseram a cozinha – a mesma que investiu há pouco tempo na conquista de uma estrela Michelin – a trabalhar para alimentar bombeiros, voluntários e deslocados. Ao RG3 chegaram toneladas de roupas, brinquedos e pequenos electrodomésticos. Entre contas solidárias, apareceu perto de um milhão de euros. O executivo madeirense assegurou também, através de apoios sociais, um montante de 9500 euros para as famílias mais carenciadas. Mas, apesar de tanta solidariedade, o saldo ainda é curto face à dimensão da tragédia.

A autarquia fez as contas e fala em três milhões de euros, tanto quanto o governo vai investir na construção de um novo bloco no bairro social em São Gonçalo. Mas é preciso mais. Só para reparar as habitações danificadas serão necessários 900 mil euros, e ainda falta quantificar os danos que as empresas sofreram, as viaturas consumidas pelo fogo, os custos da reflorestação e da consolidação de taludes e escarpas, que ficaram sem as árvores que as sustêm.

Essa matemática será apresentada esta sexta-feira, numa reunião, no Funchal, que junta o governo madeirense, autarcas de concelhos afectados, e o secretário de Estado do Desenvolvimento e Coesão, Nelson de Souza. É o segundo encontro com os incêndios na agenda, e deverá clarificar o valor dos prejuízos e de onde virá o dinheiro, se de Lisboa, se de Bruxelas, se de ambas, para a reconstrução.

Os trabalhos já são visíveis nos terrenos por onde o fogo andou. No Funchal, a consolidação dos taludes que ladeiam a Cota 40 – uma das circulares à cidade – já está a ser feita. É, agora, a principal prioridade, e precisa de estar concluída antes da chegada do Inverno. Um “trabalhoso moroso”, explica o director regional de Estradas, António Ferreira, que está a ser acompanhado por uma equipa do Laboratório Nacional de Engenharia Civil. 

Plantação espécies com maior resistência ao fogo

Na montanha que abraça a cidade, onde tudo começou e quase tudo foi consumido, também já se trabalha. O governo quer dar o exemplo e numa área com perto de 25 hectares, quer criar uma zona florestal “modular e estruturante”, através da plantação de espécies com maior resistência ao fogo. A ideia é impulsionar os privados a fazerem o mesmo, tornando o coberto vegetal mais sustentável e mais resistente ao fogo.

 Em termos económicos, e para lá dos apoios prometidos aos proprietários dos veículos destruídos, o líder do PS-Madeira, Carlos Pereira, anunciou quarta-feira uma linha de crédito da República no valor de 12 milhões de euros para socorrer a economia regional. No dia seguinte, Albuquerque disse desconhecer, e deixou o recado. O interlocutor com Lisboa é o governo regional. Também de política se faz a recuperação.

Para já, a normalidade voltou. As estradas foram todas reabertas. Os desalojados têm casa nova, ainda que provisória, mas ainda existe um cheiro a queimado na memória de muitos e na garganta de tantos. 

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