Lei que permite impunidade nos maus tratos a animais põe deputados sob fogo

Partidos não se entendem na Assembleia da República. GNR contabiliza dois crimes por dia nos primeiros oito meses de 2016.

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NELSON GARRIDO / PUBLICO

Os deputados estiveram esta terça-feira debaixo de fogo, por não terem ainda conseguido entender-se para corrigirem a lei de 2014 que criminaliza os maus tratos e o abandono dos animais de companhia. Uma lei cujas lacunas, na opinião de vários operadores judiciais, tem permitido que muitos dos que maltratam animais escapem impunes.

A Ordem dos Advogados celebrou o dia do animal com um debate em que estiveram presentes especialistas naquele que já está a tornar-se um novo ramo do direito, o direito animal. “A actual situação leva ao arquivamento dos inquéritos. Depois as pessoas dizem que os tribunais não funcionam. Mas neste caso quem não está a funcionar é a Assembleia da República”, criticou uma das coordenadoras do evento, Alexandra Reis Moreira, para a seguir concordar com a afirmação de um advogado da Madeira que se tem dedicado à defesa dos direitos dos animais nos últimos anos, João Henriques de Freitas: “A legislação em vigor é um exemplo típico de primeiro ano de faculdade de como não fazer uma lei”.

Membro do gabinete da procuradora-geral da República, o jurista Raúl Farias anda há dois anos a elencar publicamente, uma a uma, as deficiências – que vão desde as autoridades entenderem não ter legitimidade para entrarem em domicílios onde se encontrem animais domésticos em perigo, até ao facto de a lei não punir quem mate um bicho sem lhe causar sofrimento prévio – com uma bala na cabeça, por exemplo. A lei não prevê que possam ser realizadas buscas para recolha de animais que estejam a ser alvo de criminalidade.

Todos os dias dois animais são vítimas de maus tratos

Daí que em 2015 não tenham sido mais de três as condenações pelo crime de maus tratos nos tribunais portugueses, apesar de terem sido desencadeadas 1373 investigações. No que ao ano em curso diz respeito o Ministério da Justiça ainda não tem dados sobre as condenações. Já a GNR registou na sua área de intervenção – que exclui os centros urbanos – uma média de onze denúncias de maus tratos por dia entre Janeiro e Agosto de 2016, tendo identificado neste período 494 crimes, ou seja, dois por dia.

Confusão e absurdo são algumas das palavras usadas por Raúl Farias para descrever o actual regime legal. “Quando começar a haver condenações não haverá solução senão restituir o animal maltratado ao dono”, por falta de soluções alternativas, antevê o procurador. “Não faz sentido”, observa. Mas há mais: “Mesmo que os maus tratos sejam perpetrados contra 50 ou 60 cães, serão sempre encarados em tribunal como um único crime”, por causa da forma deficiente como a lei foi redigida. E destruir um bem inanimado de terceiros é, nalgumas situações, mais penalizável por lei do que maltratar o animal alheio.  

A má notícia é que os deputados que criaram a lei, que alguns deles como o socialista Pedro Delgado Alves admitem ter falhas, não conseguem agora entender-se entre eles para a corrigir. Além de terem novas deficiências já identificadas quer pela Ordem dos Advogados quer pelos conselhos superiores da magistratura e do ministério público, às propostas de correcção apresentadas por socialistas, bloquistas e PAN – Partido Pessoas, Animais, Natureza falta um consenso por parte dos restantes partidos que lhes viabilize uma aprovação parlamentar. O aliado político mais expectável, o PCP, já disse que não vai nisso, por entender que os maus tratos dos animais de companhia não devem ser punidos enquanto crimes.

A sucessão de deficiências legislativas lembra a Raúl Farias um paquiderme numa sala: “Há dois anos que o vejo lá. Cada vez está maior. E agora a Assembleia da República quer meter lá dentro mais uns quantos elefantes”.

“Saltámos o muro e levámos o animal”

Ligado à associação Ajuda a Alimentar Cães e a outras organizações congéneres, o advogado da Madeira João Henriques de Freitas tem recorrido, com outros activistas, à chamada “acção directa” para resgatar animais maltratados no Funchal: se estão ao ar livre, em quintais e logradouros, vão buscá-los sem pedir autorização a ninguém.

A associação faz vídeos de alguns desses salvamentos, em que mostra as condições em que encontra os animais. Valente, um pastor alemão, foi um desses casos. “Vivia há cerca de cinco anos acorrentado numas escadas duma casa do Funchal, praticamente sem alimento e no meio de dejectos. Bebia água verde de um balde”, descreve o advogado. Quando os membros da Ajuda a Alimentar Cães saltaram o muro para o irem buscar, “metade da cartilagem das orelhas tinha sido comida pelas moscas e a zona da coleira estava em carne viva, com larvas”. Tinha dificuldades em andar, prossegue o advogado. Hoje, conta, mora numa casa com piscina onde “vive feliz e contente”: foi adoptado por uma família com posses.

Depois de ver o Ministério Público arquivar o processo judicial que desencadeara, o João Henriques de Freitas não se conformou: recorreu do arquivamento e conseguiu que o homem que manteve Valente nestas condições fosse condenado pelo tribunal a pagar uma multa de 300 euros, bem como as despesas que a associação teve com o seu tratamento.

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