Juízo final

Do que pude apurar, a estrutura de ensino e o sistema de classificação penaliza em excesso os alunos.

 

É de presumir que alunos e encarregados de educação possam confiar nos classificadores de exames, quantas vezes elementos decisivos para as provas de acesso dos primeiros e determinantes na sua vida académica e profissional. Mas nunca como agora perdi a confiança nos meus próprios préstimos, enquanto classificador, perguntando-me por que erros grosseiros de avaliação terei prejudicado sucessivas gerações de alunos. Afirmo-o sem pudor e no rescaldo dos resultados das reapreciações de exames a que, lamentavelmente, tantos alunos recorrem, vulgarizando o excepcional pedido. O serviço de exames perdeu alguma impunidade de que gozaria. Perante a negligência escandalosa que, também na qualidade de encarregado de educação, testemunhei no trabalho de classificação de alguns professores, apenas me resta duvidar da própria prática.

A suspeita e indignação vêm a propósito dos dois exames de Português (1.ª fase), relativos a 9.º e 12.º anos. Fala-se no escândalo do primarismo dos dirigentes políticos ou na ausência de uma acção para os fogos florestais, mas esquece-se que se vive um tempo de impostura a outros níveis (um quase desleixo formal no sistema de ensino, por exemplo), vagamente remediado pela aparência de plácida competência: uma falha no sistema de classificação segue a tramitação processual e é remetida para a subcategoria de “lapso”. A fraternidade tribal (leia-se protecção corporativa) desvaloriza o facto de estar em causa um montante de 15% na prova de 9.º ano ou de 2 valores na de 12.º. Ao que parece, o valor não é considerável do ponto de vista moral, porque o sistema prevê uma alternativa ao erro grosseiro e à injustiça gritante: a intervenção do professor-relator — figura que, como se espera, não deverá implodir o sistema, mas mantê-lo, ao ponto de servir como tampão entre o modelo avaliativo (com suas fissuras) e a comunidade avaliada. É o plano possível. Cabe ao professor-relator estabelecer uma fronteira admissível entre o resultado da incúria dos pares e a indignação dos examinados que solicitam provas e suscitam a sua revisão. Não admira que o professor-relator proceda segundo um método razoável que a todas as partes agrade: onde a alegação for mais forte, permita-se alguma benevolência, estabelecendo pontos de concordância com o reclamante, na certeza, porém, de que nenhum tipo de radicalismo possa pôr a nu o descrédito do classificador.

Escrever é uma provocação, como alguém disse. E ler também. Do que pude apurar, a estrutura de ensino e o sistema de classificação penalizam em excesso os alunos. Dir-se-ia mesmo que há uma tendência para sancionar (como já em anos anteriores comprovara). Aliás, essa propensão não se observa apenas na recta final da avaliação anual (pelo “juízo final” da avaliação externa), mas ao longo do trajecto escolar: quem possui uma fé quase infantil na integridade dos funcionários públicos também condescende com dogmas como “Eu nunca dou 5 no primeiro período”, “Um 20 não se dá; um 20 é para o professor”, “Os miúdos agora não sabem nada”, “Quem não vai às minhas aulas de apoio não chega lá”, “Nunca dei mais do que 17”, “Antes de Dezembro não lhes mostres os dentes”, “Páscoa alta, chumbo na malta” e outras pérolas que, à força de repetidas, se assemelham a preceitos. E tão alto e longe voam os mitos que uma das perniciosas lições da velha escola — a de que o bom professor é o austero — se mantém carregada de vocação.

Os métodos de classificação — que este ano tiveram a lamentável novidade de uma supervisão online, geradora, a meu ver, de um distanciamento maior entre classificadores e de um efeito de obediência muito musculado — são distintos entre docentes, ainda que se tente criar a sensação de que, perante cenários ou exemplos de resposta, descritores de níveis de desempenho e uma mesma resposta de um aluno, a pontuação atribuída por um número invariável de docentes possa ser infalivelmente a mesma. Não é. Em Português não é, nem pode ser. Há que contar com diferentes variáveis, entre as quais a experiência científica do docente, a sua habilidade para alcançar o plano de intenções do aluno, a “arte” de escapar à imposição de critérios fixos, tantas vezes cerceadores.

Não deixa de causar espanto que, no caso da prova do básico, um relatório de professor-relator faça referência ao facto de existirem, no discurso do aluno, algumas incorrecções ao nível da pontuação, ao longo de um período discursivo que, por sua vez, contém cinco (5) incorrecções a esse nível. Não deixa de causar espanto que na prova de 9.º ano respostas fundamentadas e com substrato sejam cotadas a zero. E menos surpreende que, perante abordagens inspiradas ao texto camoniano (o soneto “Oh! como se me alonga, de ano em ano”), o classificador manifeste uma indiferença anódina, própria de quem se rege pela mais curta e obtusa mentalidade.

Num tempo em que substituímos o ambiente opressivo das repreensões e das ameaças de outrora, criámos o ensino do fatalismo com que, para parafrasear Sophia, tornamos as almas dos alunos mais pequenas. “Novas antenas continuam a difundir velhas asneiras”, lá dizia o outro. É de algum modo o espelho do que sou: um velho e pequeno tirano a justificar a sua mediocridade.

Professor

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