“Já percebi que não quer assumir-me como filha. Só me resta pedir-lhe que me ajude”

Grande industrial do aço enjeitou paternidade de actriz de novelas. Obrigado a fazer teste que comprovou ser ele o pai, acusou a filha de caça à fortuna para a excluir da herança.

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Marina Santiago: o Supremo obrigou um milionário a reconhecê-la como herdeira DR

O caso do industrial milionário que andou durante anos a furtar-se a reconhecer a paternidade de uma actriz de novelas teve um novo desenvolvimento: já depois de os teste de ADN terem mostrado sem margem para dúvida que Fernando Pinho Teixeira é, de facto, o pai de Marina Santiago, o comendador octogenário tentou excluir a filha da herança, acusando-a de ser uma caça-fortunas. O Supremo Tribunal de Justiça não lhe deu, porém, razão, numa questão que tem gerado controvérsia entre os juristas. Terá um filho nascido fora do casamento o direito de reclamar a sua condição de herdeiro de um pai que nunca quis sê-lo, e que nunca viu sequer?

O caso remonta a 1979. A Fernando Pinho Teixeira ainda não chamavam o rei do aço, por causa do sucesso que havia de alcançar nesta indústria, mas já não era o rapaz pobre criado entre porcos e vacas que tinha chegado a pedir pão para comer nas ruas de Arouca. Tinha 42 anos, mulher e filhos quando conheceu em Abrantes, por intermédio de um amigo, uma ajudante de cabeleireiro de 19, quase da idade dos filhos. Durou escassos meses o relacionamento com Maria Olinda, que chegou a levar consigo ao estrangeiro em viagens de negócios. Mas nem por isso deixou de dar fruto. O empresário havia de mostrar mais tarde, no decurso da averiguação oficiosa de paternidade, a sua estupefacção perante o sucedido. Afinal, tivera o cuidado de lhe dar sempre a pílula antes de terem relações sexuais.

Desempregada e sem meios para criar a criança, a ajudante de cabeleireira deita mão a injecções e comprimidos para desmanchar o que tinha sido feito. Sem sucesso. Passa a trabalhar em bares, a servir bebidas, e acaba por entregar Marina aos cuidados de um casal de Torres Novas. Mas o casal vivia numa casa abarracada e era alcoólico. Foram tempos difíceis, em que sofreu fome e agressões. “A primeira vez que tive um colchão para dormir tinha oito anos”, contou numa entrevista.

A progenitora visitava-a de 15 em 15 dias. Aos 12 anos leva-a para morar consigo. A actriz diz que sempre soube quem era o pai, apesar de o processo de averiguação de paternidade desencadeado na altura em que nasceu ter sido arquivado. O comendador alegou na altura que Maria Olinda era promíscua, conta o advogado de Marina Santiago, Fernando Ramalho. Melhor sorte teria a filha também “ilegítima” de um irmão do comendador, que acabaria por ver reconhecida a sua ascendência paterna aos cinco anos.

Uma carta decisiva

Aos 20 anos, e já empregada como relações públicas da RTP, depois de ter feito um curso nesta área, escreve ao progenitor uma carta que os tribunais hão-de considerar mais tarde crucial para o desfecho do caso. “Exmo. Sr. Fernando Teixeira, sinceramente não sei como começar esta carta. Talvez começando por me apresentar como uma menina que quer ter o direito de saber quem é o pai”, principia, para a seguir descrever como sempre a magoou nunca ter tido o carinho de um progenitor.

“A minha mãe sempre me disse que o senhor era meu pai e sempre me disse para eu o esquecer, mas nunca o fiz! Quando tinha 15 anos tentei contactá-lo telefonando-lhe, mas depois perdi a coragem e desliguei”. É num tom de desculpa que termina a missiva: “Por favor não me interprete mal neste desenrolar de desabafos, mas a minha ansiedade de o conhecer e de falar com o senhor fala mais alto. Tenho consciência de que esta minha carta poderá ir para o lixo, mas mesmo assim acredito que o senhor poderá fazer o teste de ADN e então não restarão dúvidas.”

Não obtém qualquer resposta. Na véspera de fazer 21 anos volta a insistir, com um ultimato: ou Fernando Teixeira se encontra com ela para poderem “chegar um consenso”, ou desencadeará uma acção de investigação de paternidade. A jovem ignorava que à medida que passava o tempo se esgotava o prazo legal em que o podia fazer.

Aos 22 anos envia nova missiva, onde explica ao pai que teve de desistir de reivindicar os seus direitos em tribunal. “Que mal fiz eu para ser tratada com indiferença, é pecado querer conhecê-lo, pedir ajuda a um pai que tem possibilidades de me ajudar na vida?”, interroga. “Já percebi que ter o seu carinho, assumir-me como sua filha, fazermos o teste de paternidade o senhor não quer. Por isso só me resta pedir-lhe que me ajude…”.

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O patrão do grupo Ferpinta, que inclui mais de 20 empresas, é líder nacional na produção de tubos de aço. Vai em 12 netos e goza de uma reputação que lhe granjeou já por duas vezes ordens honoríficas impostas pelo Estado português DR

Só na carta seguinte muda de tom: “Apenas quero chegar a um acordo financeiro, uma vez que seria difícil, e compreendo, que me acarinhasse como pai […]. O número que me queria oferecer não é digno de uma filha a quem nunca deu nada, sabe perfeitamente que não me estou a referir apenas a nível financeiro.” Desta vez, termina com uma ameaça: se nada lhe responder, irá ao programa da SIC Ponto de Encontro, que na altura reunia familiares que tinham perdido o rasto uns aos outros.

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Primeiro encontro

A saga judicial começa em 2006, já Marina Santiago passou por programas nos três canais televisivos. É uma das caras da novela da TVI Fala-me de Amor e capa da edição de Julho desse ano da revista Maxmen, dedicada ao público masculino. O processo sofre várias vicissitudes, desde logo porque o presumível progenitor falta pelo menos cinco vezes aos exames hematológicos para determinar o ADN. Uma falha que o Tribunal de Santa Maria da Feira desvaloriza o suficiente para ilibar o arguido, mas que mais tarde há-de obrigar à repetição do julgamento. Por outro lado, havia a questão do curto prazo previsto na lei para desencadear a acção de investigação da paternidade. Valeu à actriz ter mais tarde sido considerada inconstitucional essa norma do Código Civil.

A primeira vez que é chamado para fazer o teste de paternidade, o industrial acede a encontrar-se com a filha, no escritório do advogado dela. “Resolveu conhecer-me e tentar chegar a um acordo para eu desistir. Foi a única vez que tive uma conversa a sós com ele. Falei da minha vida, de tudo o que sentia por ele, de ter uma relação de... não digo pai e filha, mas pelo menos de amizade. A minha conversa com ele não resultou em nada. Foi muito educado, mas remeteu-se ao silêncio”, havia mais tarde de recordar Marina Santiago.

O patrão do grupo Ferpinta, que inclui mais de 20 empresas, é líder nacional na produção de tubos de aço, tendo-se expandido para Angola e Moçambique e começado a apostar também na hotelaria. Vai em 12 netos e goza de uma reputação que lhe granjeou já por duas vezes ordens honoríficas impostas pelo Estado português. A Marina oferece desta vez uma boa maquia para que deixe de lhe chamar pai de uma vez por todas. Mas ela não desiste.

Caça à fortuna?

O resultado do teste que o septuagenário Fernando Teixeira acaba por ser forçado a fazer no segundo julgamento dissipa quaisquer dúvidas. Em último recurso, os advogados do comendador lançam mão de uma teoria que, apesar de controversa, tem feito o seu caminho na jurisprudência portuguesa: a de que o reconhecimento da paternidade não implica, necessariamente, o direito a herdar desse pai. É isso mesmo que determina um acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2013: quando o verdadeiro objectivo de um filho em busca das origens for enriquecer à custa do progenitor, o pai pode deserdá-lo, já que a lei que protege os direitos dos herdeiros deve também dissuadir a caça à fortuna.

Não foi, porém, o que decidiu o mesmo tribunal, embora com juízes diferentes, em relação a este processo. Num acórdão recente que não é passível de recurso, o comendador é severamente criticado por se ter refugiado num “silêncio atemorizado e ensurdecedor”, apesar de sempre ter dado mostras de ser um “homem sério e vencedor na vida”, levando a filha ao desespero de lhe exigir dinheiro.

Os juízes decidiram não premiar o “alheamento e desprendimento” que manifestou ao longo de anos libertando-o das obrigações legais de reconhecer a herdeira. Nem doutra forma poderia ser, observam, uma vez que a lei impõe que todos os filhos tenham os mesmos direitos em relação ao pai, tenham nascido fora ou dentro do casamento.

Quando analisou o assunto, o Tribunal da Relação do Porto tinha chegado já à mesma conclusão: “Qual a razão por que se sanciona uma pessoa que é filha de outra por dela querer ser herdeira? Mas não é essa pretensão tão igual à dos filhos que foram reconhecidos como tal pelos pais? A filiação do perfilhado é mais moral do que a filiação daquele que o pai rejeitou?”, interrogaram os juízes.

É duvidoso que a saga judicial termine aqui: precavido, o comendador já terá feito partilhas, que Marina Santiago ameaça anular. Nem a actriz nem o pai aceitaram falar com o PÚBLICO.

 

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