Insolvência de escrivã complica restituição de milhares desviados

Funcionária das Varas Cíveis do Porto acusada de desviar 132 mil euros de processos judiciais pediu a reforma e conseguiu evitar demissão em processo disciplinar

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Arguida trabalhava nas Varas Cíveis do Porto que funcionam no Palácio da Justiça daquela cidade Manuel Roberto

A escrivã-adjunta acusada este mês por ter desviado 132 mil euros de processos judiciais para contas que controlava foi declarada insolvente em Março de 2014, o que significa que todo o eventual património que dispunha foi usado para pagar dívidas. Isso dificultará os vários lesados deste caso, que inclui particulares, empresas e o próprio Estado, de conseguirem reaver o prejuízo que tiveram. Em causa estão mais de 40 transferências bancárias que variavam entre os 696 euros e os 9130 euros.

Para evitar a aplicação de uma pena de demissão, que chegou a ser proposta no âmbito de um processo disciplinar aberto no final de 2013, a funcionária de 58 anos — que foi oficial de justiça quase 35 anos — acabou por pedir a reforma. “Em virtude de a arguida ter, entretanto, sido desligada dos serviços a partir de 1 de Setembro de 2014, por aposentação, o vínculo de emprego público cessou nessa data”, adianta o Conselho dos Oficiais de Justiça, num email enviado ao PÚBLICO. Logo, explica, a Administração Pública perdeu o poder disciplinar sobre a funcionária.

A reforma antecipada valeu à escrivã uma penalização de tal ordem que apesar de ter uma remuneração base de mais de 1700 euros, ficou com uma reforma de pouco mais de 500 euros. Tal significa que esta prestação é impenhorável, já que é inferior ao salário mínimo nacional, uma situação que tornará muito difícil aos lesados reaverem o seu dinheiro.

O Estado poderá, no entanto, ser chamado a pagar a indemnização de alguns lesados, já que o prejuízo que tiveram será decorrente de uma acção dolosa de uma funcionária pública, no âmbito das respectivas funções.

A funcionária, que trabalhava na 4.ª Vara Cível do Porto, usava as suas funções e os privilégios que possuía como utilizadora dos sistemas informáticos da Justiça para encaminhar dinheiro à guarda em alguns processos judiciais para contas que controlava. A maior parte dos lesados são bancos que tinham acções de cobrança de dívidas pendentes naquela instância. O dinheiro existente nesses processos, a maior parte relativo a pagamentos de taxas de justiça, deveria ser canalizado para a empresa que intentara a acção. Acabaria, contudo, no bolso da funcionária.

Entre os lesados há também vários cidadãos que tinham sido sujeitos a penhoras, mas que, no ajuste final de contas, tinham verbas a receber.

Aparentemente a funcionária fazia essas transferências através dos mecanismos habituais, substituindo apenas o número da conta dos efectivos beneficiários por uma de quatro contas que controlava. Uma delas estava em nome da própria funcionária e da sua mãe, conta essa que recebeu quase 69 mil euros entre Dezembro de 2011 e Novembro de 2013, o período em que o esquema se manteve. Mais de 36 mil euros, segundo a acusação, foram canalizados para uma outra conta em nome da mãe e de um irmão da escrivã, mas que seria gerida por esta. A arguida terá usado ainda uma conta do filho para receber uma parte do dinheiro e a conta de uma amiga emigrante.

A funcionária só foi descoberta no último trimestre de 2013, tendo usado o esquema durante mais de um ano e meia sem ser detectada. “A situação manteve-se até ao momento em que o Banco Comercial Português, ao ter recebido, a 16 de Outubro de 2013, um ofício emanado do IGFEJ [Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça], relativamente a uma transferência que teria sido feita a seu favor, para restituição de taxa de justiça paga no âmbito do procedimento cautelar de processo que corria termos na 4º Vara Cível do Porto se apercebeu que o NIB ali indicado não correspondia a qualquer conta por si titulada, dando de tal facto conhecimento àquela entidade”, lê-se na acusação.

Apesar de haver um processo disciplinar a correr desde os finais de 2013, não foi nenhuma participação feita pelo Conselho dos Oficiais de Justiça, responsável pelos processos disciplinares destes funcionários, a dar origem ao inquérito-crime. O processo foi aberto a partir de uma queixa-crime feita pelo BCP em Março de 2014. O banco queixa-se de ter sido lesado em mais de 60 mil euros. Várias transferências de que deveria ter sido beneficiário, teria sido creditados “indevidamente” em contas ligadas a uma funcionária do tribunal.

Outra escrivã chegou a ser arguida

Uma outra escrivã, superior hierárquica da acusada, chegou a ser constituída arguida, mas o Ministério Público acabou por arquivar as suspeitas relativamente àquela funcionária. As dúvidas foram suscitadas pelo facto de as autorizações que a escrivã-adjunta tinha no sistemas informático das custas não lhe permitirem fazer transferências de verbas afectas a processos judiciais, sem que as mesmas fossem confirmadas por superiores. As declarações da acusada e os elementos recolhidos na investigação criaram, porém, a convicção de que a funcionária actuou sozinha.

Segundo a acusação, a funcionária percebeu “que lhe seria possível aceder ao computador da escrivã de direito, escrivão auxiliar de direito ou do secretário de justiça, aproveitando-se dos momentos em que estes, estando momentaneamente ausentes dos seus postos de trabalho, mantinham os computadores em modo de acesso ao Sistema Informático das Custas Judiciais, com o perfil necessário para a confirmação, para concretização de tal acto”. Os postos de trabalho eram próximos dos da acusada. No caso da escrivã e do escrivão auxiliar eram na mesma sala e no caso do secretário de justiça, o mais graduado, na sala ao lado.

Na acusação, a procuradora reconhece que a escrivã repôs 6258 euros em alguns processos, mas sublinha que só o fez devido “às pressões sentidas advindas de requerimentos enviados aos autos e ao próprio IGJEJ ou em razão de contactos recebidos por parte dos verdadeiros beneficiários”. Foram situações que permitiram à funcionária manter o esquema por mais tempo sem ser descoberta.

Contactado pelo PÚBLICO o advogado da escrivã-adjunta, Hugo Costa, optou por não fazer declarações, adiantando apenas que a cliente vai pedir a abertura de instrução. 

Instituto pede indemnização de 32 mil euros

Associado ao processo-crime está já um pedido de indemnização cível feito pelo próprio Ministério Público em nome do Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça, que gere os dinheiros do Ministério da Justiça. O instituto pede à escrivã- adjunta o pagamento de mais de 32 mil euros, de que a funcionária se terá apropriado. Em causa estão verbas que estavam à guarda dos processos e deveriam ter revertido paro o instituto, como custas do processo. Essas verbas tinham sido pagas pelas partes através das taxas de justiça. “O Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça, viu-se privado de vários quantitativos que, por determinação legal, para ele reverteriam, sendo ainda responsável por outros cuja entrega deveria ter sido efectuada a particulares, após decisão judicial, e que se encontravam, em última instância, à sua guarda”, lê-se no despacho. O Ministério Público notificou outros 11 lesados, a maioria bancos, para apresentarem pedidos de indemnização, referindo que o BCP já manifestara intenção de fazê-lo. Até ao momento, já entraram vários pedidos de indemnização cíveis nos tribunais.

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