IGAI achou estranho jovens da Cova da Moura irem saber de amigo à esquadra

No relatório de 2017 que arquivou sete dos nove processos disciplinares, Inspecção-Geral da Administração Interna mostrou perplexidade por jovens irem apenas saber do amigo. Ministério Público acusou 18 polícias de vários crimes na semana passada.

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IGAI, liderada por Margarida Blasco, investigou alegadas agressões a jovens da Cova da Moura Nuno Ferreira Santos

A Inspecção-Geral da Administração Interna (IGAI) achou pouco verosímil que os jovens da Cova da Moura tivessem ido à esquadra de Alfragide apenas para saber do seu amigo ali detido. E isso foi uma das razões para pôr em causa a sua versão e acreditar antes na da polícia de que aqueles tinham tentado invadir a esquadra, mesmo com testemunhas a não confirmarem o arremesso de pedras de que os agentes alegaram ter sido vítimas. A IGAI arquivou sete dos nove processos disciplinares que resultaram em duas suspensões de agentes da Esquadra de Intervenção e Fiscalização Policial da Amadora (a chamada esquadra de Alfragide).

Com o despacho deste mês do Ministério Público (MP) a acusar 18 agentes de tortura e racismo entre outros crimes, como falsificação de autos, ficou claro que o MP tinha interpretação distinta do que aconteceu. Lendo os relatórios de 2015 e de 2017 da IGAI, instituição que fiscaliza a legalidade da actuação das forças policiais, percebe-se que algumas das justificações que levaram o inspector de 2017 a arquivar as acusações que foram deduzidas no de 2015 resultam também de interpretações distintas sobre os mesmos factos.

Num relatório de Fevereiro de 2017 em sequência dos nove processos disciplinares abertos, o inspector da IGAI lança as suspeitas sobre os jovens com argumentos como o facto de existirem mediadores do bairro entre o grupo pressupor que estes sabiam que não havia motivo para se deslocarem à esquadra, e que nenhum era advogado ou familiar do jovem detido.

Como pretendiam apoiar um detido?

Ou seja, ao inspector suscitou dúvidas por os jovens irem à esquadra saber de um amigo. Contactada pelo PÚBLICO a IGAI diz agora que “em momento algum se assume nos processos tal iniciativa como suspeita”. Mas “apenas se inquire, como decorre dos relatórios, que apoio concreto pretendiam os jovens facultar, pois todos sabiam já que o amigo se encontrava detido”.

No relatório de 2017 refere-se que a versão de todos os polícias presentes é a de que o grupo queria entrar na esquadra contra a vontade destes e que foram atirados objectos. O inspector escreve que a versão da polícia tem mais consistência, apesar de um dos polícias que estava no interior da esquadra dizer que não ouviu barulho de pedras a bater nos vidros, e de uma testemunha que ia a passar relatar desacatos, mas não ter confirmado que tivessem sido atiradas pedras.

Estes factores fizeram o inspector concluir que a versão certa se tratava da situação descrita pelos polícias.

No relatório de 2015, que o MP cita, escreve-se: “As versões que incluem o arremesso de pedras ao edifício da esquadra não são sustentáveis. A distância do muro do jardim até à parede do edifício não é maior que cinco metros. As pedras teriam de forçosamente partir os vidros das janelas, que são logo ali, ou deixar marcas de embates na parede. E não havia nem vidros partidos nem buracos na parede quando a inspecção se deslocou ao local.”  Também refere o mesmo documento que “invadir uma esquadra policial não é fácil”, sobretudo quando está em frente a outra esquadra da PSP.

Sobre uma das acusações feitas num primeiro relatório de 2015 a um dos chefes de que tinha havido falsificação do auto, a IGAI diz no documento de 2017 que se fosse esse o caso então dois agentes que se deslocaram à esquadra vindos de outro local teriam dado conta de um “embuste” criado e não teriam corroborado a versão dos colegas. O inspector diz ainda que se a versão dos jovens fosse a certa, então os próprios teriam feito saber a dois oficiais que entretanto apareceram naquela esquadra o que se passara. A IGAI acredita que a hipótese de eles não terem feito essa queixa aos oficiais não era razoável.

Jovens com várias lesões

Os relatórios médicos aos jovens indicam várias lesões entre traumatismo craniano, hematomas, dentes partidos, lesões provocadas por disparo de balas, tudo consequência do que se passou na esquadra de Alfragide, segundo o MP. Os jovens ficaram detidos durante 48 horas e de acordo com o MP foi-lhes negada a possibilidade de comunicar com o exterior.

Fonte oficial da IGAI explica as diferenças dos documentos de 2015 e 2017: no primeiro “foram deduzidas acusações, as quais, em face das diligências realizadas na fase de defesa, se mostraram, algumas, improcedentes”; “a fase processual de defesa, na qual se exerce o contraditório, explica tal evolução”. A inspectora Margarida Blasco já tinha sublinhado ao PÚBLICO que o processo-crime e processo da IGAI são distintos, estando este último já concluído e o primeiro iniciado agora.

Depois deste relatório de 2017, a IGAI arquivou sete processos disciplinares e sancionou dois agentes com suspensão por 70 e 90 dias, respectivamente, um deles com afastamento da esquadra, por falsificação de auto e por um deles ter atirado tiros com balas de borracha (mas recorreram, estando ainda ao serviço).

Na acusação, o MP diz que os agentes privaram os jovens de liberdade e cometeram ofensas à integridade física grave, tortura e tratamento cruel, degradante e desumano, “determinados por ódio racial, com extrema frieza e pelo prazer de ver o sofrimento dos ofendidos”. Entre as várias frases de ódio dos polícias que foram registadas pelo MP está esta: “Se eu mandasse exterminava todos os africanos!” 

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