Joana Moura: Ideias que se comem

É muito provável que quem for ao Belcanto ou ao Mini Bar, dois dos restaurantes de José Avillez em Lisboa, encontre, agora ou num futuro próximo, algum prato feito com um miso de tremoço. Se isso acontecer, fique a saber que quem ajudou o chef a desenvolver este produto que cruza uma técnica japonesa (o miso tradicional é a fermentação de arroz, cevada e soja com sal) com um produto tipicamente português (o tremoço) foi Joana Moura, uma jovem cujo trabalho é não tanto cozinhar mas olhar para a comida de outra forma e descobrir-lhe potenciais que desconhecíamos.

E quem, dentro de pouco tempo, for a algum evento organizado pela Fundação Champalimaud e deparar com uma “sobremesa icónica” que representa o próprio espírito da fundação, pode lembrar-se também de Joana Moura. Foi a ela que os responsáveis da fundação lançaram este desafio. “O que me pediram foi uma sobremesa que tivesse muito a parte do pensar, do estudo, do conhecimento, da procura, da pesquisa”, explica Joana Moura. “Discutimos sabores, texturas, a linguagem, o design, até porque a fundação tem uma imagem muito própria, com linhas mais estilizadas. Queriam algo que fosse aparentemente muito simples mas que depois tivesse complexidade.”

Queriam, no fundo, comida que nos leve a novas descobertas. E isso tem tudo a ver com o trabalho de Joana Moura. Filha de químicos — a fotografia para esta entrevista foi tirada em casa dos pais, ao lado de um quadro com uma tabela periódica que indica a composição química dos vegetais —, Joana formou-se em Arquitectura Paisagista e depois em Design Urbano. Parecia ter escolhido um caminho, quando se apercebeu de que depois do dia a trabalhar no atelier passava as noites a fazer pão, fascinada com o processo.

Decidiu mudar. Foi para Paris, onde passou pela Escola Superior de Cozinha Cordon Bleu e depois pela Ritz Escoffier. Em Portugal inscreveu-se no Mestrado de Ciências Gastronómicas, encantou-se com a gastronomia molecular, fez o livro Cozinha com Ciência e Arte e, juntamente com outras sócias, criou o Cooking Lab, onde ensinam como se trabalha com muitos desses ingredientes que até há algum tempo eram um mistério para os cozinheiros — agar, xantana, alginato — e que se popularizaram muito graças ao trabalho do chef espanhol Ferran Adrià no já desaparecido restaurante elBulli.

“A ideia”, diz, “é conhecermos o máximo de técnicas possível e aplicá-las de forma que seja interessante. Não é usar técnicas pelas técnicas, mas perceber o que estamos a fazer e fazê-lo com conhecimento, lógica e consciência.” É um trabalho que pode parecer muito futurista, com laboratórios e provetas, mas que tem também uma componente de regresso ao passado.

“Outra das técnicas que estou a trabalhar para o grupo do chef José Avillez é a conservação de certos alimentos em cal. Há no Belcanto legumes que colocados numa calda de cal e que quando depois são cozidos ficam com uma textura completamente diferente. Conseguimos ter um cubo de abóbora firme por fora e em puré por dentro. E isto são técnicas ancestrais. No fundo, o que Adrià fez foi muito baseado em técnicas orientais, foi buscar as gelatinas, que já eram usadas pela indústria alimentar, e que são tradicionais noutros países, mas que na Europa eram pouco conhecidas.”

Rejeita a ideia de que houve uma moda da cozinha molecular e que essa moda passou e foi hoje substituída por uma cozinha que é (ou quer parecer) o mais natural possível, com os chefs a terem hortas próprias e a irem buscar os legumes à terra para os cozinhar no minuto seguinte. “Mesmo que se diga que fazemos tudo da forma mais simples possível, esses legumes foram cozinhados a uma temperatura certa, em vácuo. Há muita tecnologia nas cozinhas, usam-se as gelatinas mais alternativas, só que já não é publicitado da mesma forma.”

As descobertas que foram (e continuam a ser) feitas vão sendo integradas nas cozinhas, e as técnicas que há uns meses pareciam muito inovadoras tornam-se banais e familiares. Mas “há ainda imenso a fazer. Adrià apenas levantou a ponta do véu”, diz Joana. E é um trabalho demorado. Voltemos ao exemplo do miso de tremoço.

“Experimentámos fazer fermentações com feijão-frade, grão e tremoço, com diferentes concentrações de sal e de fermento, e obtivemos três misos com aspectos completamente diferentes. Mas as fermentações demoram e só ao fim de um ano é que conseguimos ver o resultado.” Quando concluíram que o de tremoço era claramente melhor do que os outros produziram-no numa escala maior. “Está desde Agosto numa barrica em processo de fermentação, e no próximo Agosto vamos ver o resultado.”

E se pensarmos num futuro mais longínquo, o que podemos esperar desta área? Joana vê algumas tendências que já começaram a desenhar-se e que têm vindo a consolidar-se. Uma delas é a partilha. “Cada vez menos se vão guardar segredos culinários, essa coisa de a receita ficar escondida já não faz sentido. Hoje os chefs vão a congressos e há muita troca de informação. A globalização desta informação culinária é muito interessante e acredito que vai acontecer a um ritmo muito mais acelerado.”

Outra tendência que se verifica na cozinha é a da reunião de pessoas de áreas muito diferentes. “Brillat-Savarin [gastrónomo do final do séc. XVIII, início do XIX, autor de A Fisiologia do Gosto, um dos mais famosos tratados de gastronomia] dizia algo como ‘a cooperação é mais produtiva se for feita entre diferentes do que entre iguais’.” E a cozinha mistura várias coisas, incluindo um lado visual que é muito importante. “A alta-cozinha preocupa-se com a montagem do prato, as diferentes texturas. É também um trabalho muito delicado.”

Como mostra a sobremesa da Fundação Champalimaud, um prato é uma experiência que pode ter múltiplas dimensões. “Hoje, quando vamos a um restaurante de alta-cozinha, não procuramos uma experiência de uma só dimensão. Todos os nossos sentidos são estimulados. Há uma mise-en-scène que torna a experiência mais interessante”, explica Joana. “E existem já estudos que mostram que nesses restaurantes as pessoas conversam mais e as conversas são mais interessantes. Isso torna-as mais próximas — e mais humanas.”  Alexandra Prado Coelho

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