Hepatite C: Governo sem rumo

Choca-me a leviandade com que os nossos governantes decidem e voltam atrás ao sabor das opiniões públicas.

Muitos se recordarão como em fevereiro de 2015, em plena saída do país da assistência financeira, Portugal foi capaz de iniciar um programa de acesso universal à cura da infeção crónica pelo vírus da hepatite C. No meio de tantos constrangimentos, é importante relembrar que tal apenas foi possível porque o Governo decidiu criar uma linha de financiamento vertical idónea a garantir o acesso de todos os doentes aos antivíricos de ação direta, independentemente do grau de fibrose e do hospital onde são tratados. E mais, pela primeira vez em Portugal, assegurou-se que o pagamento dos medicamentos passaria a ser feito apenas após confirmação de cura. Isto é, um financiamento feito objetivamente em função dos resultados em saúde.

Passados dois anos, mais de dez mil pessoas foram salvas pelo Serviço Nacional de Saúde, ou seja, mais de dez mil pessoas podem legitimamente afirmar algo que, até há bem pouco tempo, não achavam ser possível: vivem livres da infeção. Vidas salvas, portanto.

Seria, pois, expectável que continuássemos. Mas, ao que parece, não. Parámos nos trilhos do nosso sucesso. Aliás, ao que parece, não só parámos, como tentámos voltar atrás.

Senão vejamos, segundo o Despacho n.º 101/2017 do Ministério da Saúde, o Governo decidiu acabar com a linha de financiamento vertical do programa de tratamento das hepatites virais. Isto é, o Ministério da Saúde decidiu não só que os medicamentos deveriam, tal como no passado, voltar a ser negociados hospital a hospital, o que prejudica a universalidade no acesso aos cuidados de saúde, como voltar a promover um pagamento cego independente de resultados.

Resumidamente, ao invés de o ministro da Saúde estar a pensar sobre como usar o inovador modelo de financiamento dos tratamentos da hepatite C noutras áreas terapêuticas, prefere pura e simplesmente, sem justificação aparente, voltar a modelos industrializados — e errados — da saúde.

A revolta dos profissionais e dos doentes foi de tal forma audível que o Ministério da Saúde, à boa maneira da “geringonça”, é certo, mas a bem do Estado, há que o dizer, revogou o referido despacho apenas três dias passados da sua publicação.

Choca-me a leviandade com que os nossos governantes decidem e voltam atrás ao sabor das opiniões públicas. Políticas fracas que mais não são do que espelho de um governo fraco.

E atenção, na área da saúde, esta postura de um certo laissez-faire, laissez-passer, que, na dúvida, nada temam, a culpa é sempre do "outro", pode ter consequências desastrosas. Estamos a falar de vidas humanas.

A falta de visão de quem nos governa e a ausência de capacidade para reformar o Serviço Nacional de Saúde no caminho de uma redução gradual da carga da doença, seja pela prevenção, seja pelo diagnóstico precoce e a cura, terão consequências desastrosas para todos nós.

Se não mudarmos rapidamente os nossos modelos de gestão, atingiremos um ponto de insustentabilidade tal que a universalidade e gratuitidade constitucionalmente asseguradas serão postas em causa, o acesso aos cuidados prejudicados e a nossa saúde comprometida.

Temos que continuar a lutar pelo SNS. Pelos doentes.

O autor escreve segundo as normas do novo Acordo Ortográfico

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