Há uma alimentação imoral?

Encontramos ao longo da História muitos exemplos da obsessão com o controlo do corpo através da alimentação – pureza, perfeição, disciplina, desejo de superioridade. O que é que tudo isto diz sobre as nossas cabeças?

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A ideia de que existe “comida limpa” pressupõe que exista também “comida suja” – e isso implica uma avaliação moral. Em todo o debate sobre uma dieta “limpa” falamos do corpo, mas estamos muito mais próximos do espírito do que pode parecer.

A obsessão com uma purificação do corpo, que passa pela forma como nos alimentamos mas também por uma prática exigente de exercício físico, não é uma novidade. Ao longo da história da Humanidade – basta pensarmos na disciplina dos estóicos ou no culto do corpo perfeito dos gregos que tanto fascinou depois os nazis – houve sempre momentos em que ela foi dominante e grupos que a promoveram de uma forma que muitas vezes se aproximou de uma religião ou de uma ideologia – certo versus errado, disciplina versus prazer, ordem versus caos.

Há nesta obsessão um desejo de ordem e, sobretudo, de controlo daquela que muitas vezes é, num mundo complexo, a única coisa que acreditamos conseguir dominar: o nosso corpo. Criar um corpo perfeito – e perfeito significa quase sempre magro – é uma forma de mostrar uma auto-disciplina que pode representar também um estatuto social.

Os Estados Unidos da América são o melhor exemplo disso: a obesidade afecta sobretudo os mais pobres, que se alimentam de junk food; os ricos fazem jogging, bebem sumos detox, comem abacates e até se submetem a jejuns voluntários. Esconderá este comportamento uma espécie de superioridade moral?

E se Eva tivesse resistido à sumarenta maçã?

“Mostramos o nosso empenho numa regeneração espiritual privando-nos do prazer da comida. O que poderá ser mais apelativo que um corpo purificado – e a promessa de Virtude Moral? Se Eva tivesse resistido à sumarenta maçã, talvez vivêssemos hoje num mundo mais moral”, ironiza, num artigo intitulado Why Clean Eating Can’t Save Your Soul, Charlotte Lieberman, autora baseada em Brooklyn e que escreve habitualmente sobre temas ligados ao bem-estar mas também às novas tecnologias e redes sociais.

No texto, Lieberman refere que o número de americanos intolerantes ao glúten triplicou desde 2009 e que, de certa forma, a privação de tudo o que tem glúten tornou-se (para quem não é realmente celíaco) “um sinal não apenas de auto-disciplina, mas um emblema de sucesso e de know-how”.

Ao mesmo tempo, a gordura e a obesidade são vistas como sinais de desleixo de pessoas que não conseguem controlar os seus instintos mais básicos, que são preguiçosas e que, em última análise, estão a prejudicar o resto da sociedade (é a questão do que custa ao sistema de saúde tratar quem tem problemas provocados pelo excesso de peso – tal como acontece com os fumadores).

Mais uma vez, há um julgamento moral subjacente a esta forma de olhar “os gordos”, que os torna até figuras de entretenimento em programas como The Biggest Loser, em que milhões de telespectadores podem saborear a superioridade de não terem aqueles corpos – que são devidamente “punidos” com doses maciças de exercício e privação dos alimentos mais desejados.

A ideia do jejum, que existe em várias religiões, está sempre ligada à da autodisciplina – que nestes casos se torna prova de fé. Nas décadas de 60 e 70, nos Estados Unidos, tornaram-se populares dietas que assumiam a ligação à religião, conta Louise Foxcroft no seu livro Calories & Corsets: A History of Dieting Over 2000 Years. As mulheres angustiadas com o peso excessivo podiam escolher, por exemplo, entre I Prayed Myself Thin; More of Jesus, Less of Me ou Help Lord: the Devil Wants Me Fat.

A mesma lógica surge também fora da religião através dos defensores da ideia, muito em voga nos finais do século XIX, de que conseguimos garantir a nossa saúde através de um regime “purificador”. Entre eles, conta-se o naturopata alemão Louis Kuhne (1835/1901), autor de The New Science of Healing que defendia (e praticava) o vegetarianismo, proibia aos seus pacientes o sal e o açúcar e receitava banhos de água fria para eliminar toxinas – ou seja, o detox.

Outro exemplo é o de Horace Fletcher, auto-proclamado nutricionista, que fez sucesso na América também no final do século XIX ao propor uma forma de comer que, segundo ele, permitia às pessoas receber os nutrientes bons e não ingerir os prejudiciais.

O sistema, que ficou conhecido como “fletcherismo” e que deu ao seu criador a alcunha de "O Grande Mastigador", defendia que se devia mastigar cada pedaço de comida cem vezes por minuto, até que ela estivesse completamente líquida. O que restasse podia ser cuspido porque era inútil para o organismo. Segundo Fletcher, quem seguisse este regime obtinha os nutrientes necessários e não ganharia peso.

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Medições corporais no Sanatório Battle Creek, dirigido pelo nutricionista John Harvey Kellogg, criador dos cereais Kellogg’s

Uma ideia de “wellness

Um bom exemplo de uma abordagem quase religiosa à alimentação é o de John Harvey Kellogg. O homem que se tornou mundialmente famoso pela criação dos cereais Kellogg’s, era um médico e nutricionista norte-americano nascido em 1852 e que viveu até 1943.

Promotor, na sua época, de um estilo de vida saudável, foi director do Sanatório Battle Creek, no Michigan, e um dos temas a que se dedicou foi o da alimentação. Era também um Adventista do Sétimo Dia (apesar de divergências com esta igreja terem levado ao seu afastamento), o que terá influenciado algumas das suas ideias sobre saúde.

Aos doentes do sanatório, grande parte dos quais se queixava de prisão de ventre e outros problemas intestinais, recomendava uma dieta vegetariana, limpeza dos intestinos, clisteres de iogurte, exercício, banhos de sol, hidroterapia e abstenção de fumar, beber e ter relações sexuais. Uma das suas obsessões era a flora intestinal, que, muito à semelhança das teorias actuais, deveria ser alimentada com bactérias boas e livre das más e que isso se podia fazer através de uma dieta adequada.

Com o seu irmão, Will Keith Kellogg, John Harvey inventou uma alternativa alimentar ao que considerava ser o excesso de proteínas na dieta americana: os corn flakes, flocos de milho (as primeiras experiências foram com trigo e com uma versão de granola) tostados. Fabricados por Will, que entretanto se zangara com John e que decidiu juntar açúcar à receita original, tornaram-se o mais famoso pequeno-almoço do século XX, substituindo para muita gente os tradicionais bacon e ovos.

Seguido por inúmeras celebridades da época, John Harvey Kellogg foi um dos gurus de um estilo de vida saudável na América da viragem do século XIX para o XX, promovendo, no seu sanatório/spa de saúde, a ideia de “wellness” e de uma “comida limpa”. Mas não foi o primeiro. E, como sabemos hoje, está muito longe de ter sido o último. 

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