Governo põe PSP a avaliar seguranças privados para "limpar" criminalidade

Medida avança no final do ano, embora associação de agentes do sector diga que é ilegal. Ministério da Administração Interna quer travar infiltração de grupos criminosos na actividade.

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A prática de crimes violentos no mundo da diversão nocturna está associada ao sector, diz relatório ADRIANO MIRANDA

O nome da festa prometia diversão e paz. Mas o álcool e o calor dos corpos que dançavam na I Love Cabo Verde, na zona industrial de Corroios, no Seixal, foram travados de repente pela morte. Passam poucos minutos das 7h, o sol acabara com a madrugada e este não era o fim esperado pelos foliões. Johnny, um operário da construção civil, tomba baleado à saída da discoteca Glow. É apanhado numa rixa à saída. Com 24 anos, estava a poucos dias de ser pai. Segurança de profissão, o suspeito dos tiros, que também feriram outras duas pesssoas com gravidade, acabou por ser detido pela Judiciária.

Para o Ministério da Administração Interna, chegou a altura de acabar com episódios violentos, como este ocorrido em Junho, nos locais de diversão nocturna, de que por vezes resultam mortos ou feridos graves.

O Governo acredita que o problema está na conduta e má formação de alguns grupos de seguranças - e na infiltração de máfias neste sector - e decidiu tomar medidas. A partir do final deste ano, todos os candidatos a seguranças terão de prestar provas teóricas na PSP para conseguirem a licença que lhes permitirá exercer a profissão, garantiu ao PÚBLICO a Secretária de Estado Adjunta e da Administração Interna, Isabel Oneto. No futuro, também os seguranças que já têm licença terão de passar nestas provas quando tiverem de voltar a certificar a formação recebida. A PSP não quis comentar esta medida.

Em todo o país, de acordo com dados da tutela, existem 37.104 vigilantes a trabalhar. Já no sector da formação, são as 32 empresas a ministrar cursos a estes profissionais. A medida surge no âmbito da avaliação do actual regime jurídico do exercício da actividade de segurança privada. A lei prevê a sua avaliação três anos após entrar em vigor e o ministério começou essa tarefa em Maio, em sucessivas reuniões com as associações do sector.

Desde 2013 que compete em exclusivo à PSP o reconhecimento de qualificações, avaliação e certificação destes profissionais, além da fiscalização do sector. A prestação de provas na polícia, porém, nunca avançou. Porquê? “Não posso responder pelo governo anterior”, diz Isabel Oneto. Para a secretária de Estado, contudo, é claro que existe um problema. “Os espaços de diversão nocturna não podem ser espaços de conflitualidade”, justifica.

E como é que as provas na PSP resolvem o problema? Isabel Oneto acredita que tal permitirá “uniformizar os critérios de atribuição da certificação” e “elevar o nível de exigência relativo às competências adquiridas na formação”. A secretária de Estado não coloca em causa “a credibilidade das empresas de formação”, mas observa que há firmas "boas e menos boas.”

Subornos para obtenção de licenças

A Associação de Empresas de Segurança Privada (AESP) apoia a medida do Governo. “Estamos completamente de acordo. Só assim se escrutina a qualidade da formação. E isto visa também matar qualquer hipótese de batota. Há quem pague para passar na formação e ter licença. Esta medida não irá acabar com toda a criminalidade associada à profissão, mas temos que começar a fechar as torneiras que abastecem o problema. Isto vai ajudar, sem dúvida, a limpar o sector”, aponta o presidente da AESP, o antigo bastonário dos advogados Rogério Alves.

Representando cerca de 60% das empresas de segurança privada existentes, a AESP admite que o mundo da segurança privada está marcado pela entrada de grupos que se aproveitam da actividade para cometer crimes. Exemplo disso é a Operação Fénix, no âmbito da qual irá responder em tribunal meia centena de arguidos, muitos deles ligados à empresa de segurança privada SPDE. São suspeitos de crimes variados, da associação criminosa à extorsão, tráfico e posse de armas proibidas. A empresa dominava a segurança na noite no Grande Porto e na região do Vale do Sousa, tendo também estendido a sua actividade a Lisboa.

Segundo a acusação, recorria a violência extrema, tendo dois dos seus homens provocado a morte de um jovem cliente de um bar em Famalicão. Foi espancado por dois ninjas da empresa à saída do estabelecimento e bateu com a cabeça no chão. O principal arguido do caso, Eduardo Santos Silva, era segurança do presidente do Futebol Clube do Porto, Pinto da Costa.

 

Quatro queixas-crime por dia contra seguranças

A violência relacionada com este sector pode ser aferida pelo número de queixas-crime apresentadas contra seguranças privados: quase quatro por dia desde 2013, indicam os últimos dados da PSP e da GNR. Entre 2013 e o primeiro trimestre 2015, a PSP e a GNR receberam 3340 queixas contra este tipo de profissionais. Cerca de 80%, ou seja, 2651 queixas, referem-se a episódios em que os cidadãos se queixam de terem sido agredidos por vigilantes.

Já os próprios seguranças não concordam com a medida: “Admito que isto está previsto numa lei e numa portaria, mas é ilegal. A PSP é um órgão de polícia criminal. Não tem competência para aferir as competências da formação profissional de uma profissão privada. As provas devem ser feitas pelo Instituto de Emprego e Formação Profissional em colaboração com a PSP. Isto é uma forma de subjugar os seguranças privados à polícia, que é uma entidade pública. Vamos lutar, se necessário nos tribunais, para que isso nunca aconteça”, garante o presidente da Associação Nacional de Agentes de Segurança Privada, Ricardo Vieira, que diz representar 11 mil associados.

As marcas de criminalidade neste sector têm sido sucessivamente retratadas nos Relatórios Anuais de Segurança Interna, realça Isabel Oneto. A actividade “continuou a revelar-se terreno fértil e atractivo para a implantação de grupos violentos e organizados que instrumentalizam a prestação de serviços para a perpetração de diversos ilícitos criminais", aponta o último relatório, divulgado este ano. "A prática de ilícitos com recurso sistemático à violência, no contexto da diversão nocturna, por empresas legalmente constituídas tem um impacto muito negativo neste sector e relevância no âmbito da segurança interna”, acrescentaTambém o relatório anterior, referente a 2014, relacionava o tráfico de armas com gangs que se dedicavam, entre outras actividades criminosas, “à segurança privada ilegal em estabelecimentos de diversão nocturna”.

Para Isabel Oneto, é “necessário ponderar a natureza da função complementar da segurança privada no contexto da segurança interna”: “Ninguém questiona hoje a importância do sector da segurança privada como instrumento de prevenção criminal”, conclui a governante.

Exames na polícia previstos no Simplex

O centro de exames na PSP é uma das medidas inscritas no programa Simplex 2016. Deverá ser financiado por fundos comunitários através de uma candidatura ao Sistema de Apoio à Modernização e Capacitação da Administração Pública. A medida prevê a implantação “de um centro de exames, em suporte informático, que permita a descentralização distrital dos testes de acesso à profissão de segurança privado e de renovação de título habilitante, atendendo a um critério de uniformização das provas”. O ministério, no entanto, não adiantou qual o valor do investimento em causa, tendo só sublinhado que “PSP apenas necessita de meios tecnológicos”. A realização dos exames obriga os candidatos a pagarem à PSP taxas que podem ir até aos 100 euros e que constituem receitas a 100% para aquela polícia.

Entre outras questões que estão a ser avaliadas no que respeita à segurança privada, o Governo diz estar atento também “à questão relativa ao trabalho não declarado, que se traduz em práticas comerciais desleais, como, por exemplo, propostas com preços inferiores aos dos custos dos serviços e fuga às obrigações fiscais e laborais”.

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