Governação e Universidade

Os docentes, funcionários e alunos que se opõem ao modelo fundação demonstram mais sentido do que os seus dirigentes.

Em finais de Abril, uma pequena nota em Diário da República dava conta de uma alteração nos estatutos da Universidade Nova de Lisboa. Não, ainda não se trata da passagem a fundação. Resultou “apenas” no aumento do número de pró-reitores de quatro para seis.

A nota que fica da leitura do diploma, vai para além do óbvio aumento do número de cargos por nomeação, e acentua aquilo que já lá estava: “livremente nomeados pelo Reitor (...) podendo este exonerá-los a qualquer momento”. Ou seja, um poder centralizado em jeito de Leviatã.

Num momento em que o discurso liberal da governance substitui antigas lógicas de governação verticais, Portugal parece querer apostar na estrita obediência. Demonstramo-nos tantas vezes como alunos da OCDE, mas parecemos incapazes de sermos pares. Olhando para o que aconteceu com o ensino superior privado, podíamos contribuir com lições extremamente valiosas.

Regressemos à governance. O conceito de sociedade civil é complexo, mas mantém em si o potencial de arena que Laclau e Mouffe designam como o político. A governação de hoje é um espaço que procura integrar o antagonismo nas suas lógicas. É uma procura de perceber antecipadamente os problemas e alargar as respostas. As lógicas que se impõem na universidade portuguesa são o contrário de tudo isto.

Veja-se o despudor de alguns reitores, ameaçando aumentar o número de alunos por turma e despedir colegas, em retaliação pelo congelamento do valor das propinas. Quem faz os seus como reféns tem um nome.

A defesa aberta do aumento das taxas sobre as famílias seria inaceitável noutro setor público. Tratam-se das mesmas famílias que já suportam diretamente 35% do orçamento do ensino superior, a que acresce o contributo dos seus impostos.

Entretanto, a participação das empresas privadas mantém-se em níveis insignificantes e maioritariamente abaixo dos 10%. Com isto são premiados com lugares nos Conselhos Gerais, incluindo a sua presidência. Ora, se fossem proporcionais ao financiamento, esses lugares caberiam aos cidadãos e às famílias, sendo o setor privado marginal. Desresponsabilizar os segundos, reclamando um peso insuportável sobre os primeiros, demonstra parte do problema. Este agrava-se, quando se colocam em lugares de decisão pessoas que defendem um modelo de mão-de-obra barata e pouco qualificada. Instala-se um estranho conceito de pares e de partes interessadas.

Também não se pode deixar de pensar na forma como o Estado é desresponsabilizado, numa matéria de externalidades positivas fundamentais para o país, com consequências várias.

A participação das partes interessadas torna a universidade mais rica e não mais pobre, permite pensar melhor o seu papel social, integra-a numa melhor relação com o meio, antecipa problemas e implica as várias partes na sua resolução. Nada disto tem a ver com alimentar redes habituais, com lugares-comuns e procurar cristalizar poderes verticais.

É por tudo isto e muito mais, que o regime fundacional merece discussão, sobretudo num momento em que já faliu noutros locais da Administração Pública. Veja-se o caso infeliz da Fundação Côa Parque.

A aplicação da Lei dos Compromissos e os embaraços administrativos kafkianos constantes, que qualquer responsável por projetos com financiamento conhece demasiado bem (sei na primeira pessoa), confirma que a universidade-fundação não é o que se diz ser.

Tornou-se demasiado expedita numa maior precariedade dos mais jovens, desvalorizando os seus vencimentos e o seu trabalho. Tornou os Conselhos Gerais em extensões de poder dos reitores. Afogou a sociedade civil e as partes interessadas. Isto é o lado errado.

O sonho das private research universities, não pode ignorar o contexto destas e os erros presentes (que existem). Veja-se o crescente endividamento, testemunhado pelo negócio de swaps de Harvard, envolvendo perdas de mil milhões de euros. É um aviso sério. De forma mais grave ainda, devemos ter em atenção a dívida de estudante, que nos E.U.A. atinge os mil biliões de euros (1.4 trillion USD) arriscando a ser um próximo subprime.

O capital que se conquistou durante séculos pode desaparecer. Muito desse capital proveio do investimento público, inspirado em visões com o “Ciência a Fronteira Sem Fim”. A NASA e outras agências estatais americanas não nascem sem visões de longo prazo. É o capital paciente de que nos fala Mariana Mazzucato.  O limite temporal dos contratos dos investigadores diz muito da perspetiva portuguesa.

Claro está, que neste plano, a ideia de um hotel numa universidade é um óbvio fait-divers. Num país que afirma a diferenciação e em que a hotelaria está no politécnico, há várias coisas que deixam de bater certo. Quando trazer receitas é o desígnio e o debate se reduz, correm-se estes riscos. Talvez pouco falte para que um reitor “empreendedor” descubra o ranking das party school para criar seu mercado. Nos E.U.A. a loucura passa por parques aquáticos e jacuzzis. Imagine-se o party campus para capitalizar uma instituição num contexto socioeconómico difícil...

O escrutínio, o debate e a participação não podem ser menorizados. É errado o que se verificou na passagem a fundação da Universidade do Minho (UM) quando a reitoria decidiu ignorar a vontade dos membros de duas unidades orgânicas de avançar com um referendo. Note-se que nessa votação em referendo, promovida pelos seus membros, a passagem a fundação foi derrotada por uma ampla maioria.

Agora, na Universidade Nova de Lisboa, corre um abaixo-assinado que já recolheu centenas de assinaturas contra a passagem apressada a fundação.

É fundamental ouvir e alterar esta lógica de governação. Em vez de reprimir, deveríamos escutar e pensar.

É mais do que compreensível esta resistência dos agentes no país em que o ensino superior privado entrou em declínio por erros vários. Os docentes, funcionários e alunos que se opõem ao modelo fundação demonstram mais sentido do que os seus dirigentes.

As lógicas de governação e participação pública definem o caminho da sociedade. Uma universidade, espaço da comunidade académica, deveria ser o lugar do logos. Infelizmente, acentua-se o governo da praxe.

Professor e vice-presidente da direcção do SNESup

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